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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 06

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 3 da edição de 15 de dezembro de 1931 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Música e músicos

Foi uma hora deliciosamente hispano-americana. Naquela residência da Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, os donos da casa, argentino e uruguaia, receberam alguns músicos e jornalistas desta capital com uma gentileza toda "gaúcha". Foi esta uma delicada oportunidade para tornar mais íntimo entre nós um notável artista, figura inconfundível do mundo musical do Rio da Prata, que há cerca de um mês se encontra em São Paulo, tendo-se feito ouvir em diversos concertos, com ardentes aclamações, mas quase desconhecido ainda pela nossa crítica.

Trata-se de Isaias Savio, um uruguaio meio acanhado e silencioso que, quando toma do violão – violão com sonoridades profundas de plano – transfigura-se à vista da gente, como personagem de mágica.

Depois de haver passado parte da mocidade naquele cenário cambiante de Montevidéu, sua terra, e de Buenos Aires, onde reside, o artista sentiu necessidade e arejar a alma, mudando de horizonte. Foi assim que, um dia, interrompeu os seus concertos e se despediu dos amigos com duas palavras apenas: "Me voy!"

E veio com o seu companheiro – o violão.

Estas coisas ele nos contou domingo à tarde, dando-nos ao mesmo tempo a conhecer riquezas de técnica e inspiração, num ambiente inca e asteca, banhado pela luz tamisada que entrava pelos vidros.

Até o fim da grande guerra, a música brasileira era desconhecida da plateia argentina. A primeira visita, ao que parece, foram cantores populares em excursão, que em teatrinhos de arrabalde fizeram ouvir "Flor do Mal", "Luar do Sertão", "Cabocla de Caxangá" e outras composições típicas que Granuja ouviu do "galinheiro" e depois foi cantar na esquina, exatamente como aqui acontece com "Garufa" ou "Mama, yo quiero un novio"…

Depois desse êxito, tais visitas amiudaram e, para completar a propaganda da música popular, apareceram o disco e o rádio. As orquestras de café vulgarizaram todas as noites sambinhas carnavalescos e maxixes bem desparafusados…

Um dia entrou também a nossa obra musical. Nos grandes concertos começaram a aparecer composições de mestres brasileiros. Realizaram-se também, e com grande êxito, audições de "virtuoses" nossos patrícios. A primeira impressão forte da música brasileira que Isaias Savio sentiu foi quando, ali por 1926, Rubinstein encheu toda a segunda parte de um dos seus granes concertos só com trabalhos de Villa-Lobos. Desde então, os frequentadores da sala "Wagneriana" se habituaram a ouvir os brasileiros, como aos franceses e russos.

Ali, o artista uruguaio ouviu também composições desse colorido Marcello Tupinambá, a quem só agora veio conhecer em S. Paulo. E tem para o nosso compositor palavras de elogio, pois aprecia a sua marcada personalidade e a expressão inconfundível de sua arte. Lamenta que os nossos compositores não tenham dado ao violão a importância que esse instrumento merece. Nnca foi tão amado e cultivado como agora. Só em Buenos Aires há cerca de 5.000 violonistas.

Neste momento, Isaias Savio continua a sua viagem. Espera partir em breve para a Europa. Aliás, enquanto está em São Paulo, estuda o nosso ambiente, surpreende o sentido das nossas músicas, também dedica algumas horas por dia às suas composições. Trabalha numa suite brasileira.

Dentro da caixa de madeira do seu violão, com arabescos de madrepérola, levará para a Europa todo o folclore sul-americano. E, naquele canto de salão, à hora pálida do entardecer, no centro de um círculo de fisionomias enlevadas, ele nos foi mostrando uma a uma, como joias, o conteúdo daquela caixa de maravilhas: era a melancolia dos pampas, a queixa ou o clamor heroico dos gaúchos, a festa de pretos na Banda Oriental, o movimento, a alegria campesina e madrigalesca de aldeias inteiras dançando ao sol na sega-rega do pericón.

Mostrou-me a milonga primitiva, veio de onde se extraiu o tango; a cantiga paraguaia, que tem o ritmo de uma rede entre laranjeiras; e, para terminar, evocando mundos extintos, executou um canto religioso dos incas, que conta mais de 8.000 anos, música mais duradoura do que a pedra, arte que sobreviveu aos deuses que a inspiraram!

E agora, depois de sua estada em São Paulo, dentro daquela caixa de Sganarello, vai também para a grande vida de Paris, Berlim e Moscou – a música ensolarada do Brasil.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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