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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Os guaxes

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na edição de 15 de abril de 1902 do jornal O Estado de São Paulo, na primeira página (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 15/4/1902 (Acervo Estadão)

 

Os guaxes

Naquele tempo o laranjal da Serrinha não estava no ermo, como agora, que não vale uma pitada de rapé: tinha bem boa casa de moradia, p'r'uma banda, perto d'água, criação grande, e dali a pedaço, longe, umas cem braças da casa, a gente via a roça de cinco alqueires, onde os milhos já embonecravam, prometendo uma colheita e tanto. O ano era de fartura, lá isso era, em todas as coisas, até nos próprios arvoredos do mato.

Foi situante no lugar um tal Chico Marzulão, sujeito estimado e bem visto dos vizinhos, casado c'ûa mulher das melhores deste sertão, não desfazendo das outras. Mas o merecimento de mais parte que seu Chico tinha, p'ra dizer uma certeza certa, era ser pai da moça mais chibante que se tem conhecido até hoje por aqui em roda. Nhá Lina se chamava aquele anjo, segundo o esquisito apelido que lhe botou o Reimundo, que lhe queria tanto como a sombra quer ao sol: porque, afinal, onde é que já se viu heresia assim, dar nome de morador do céu p'r'uma criatura do mundo dos pecadores?

O Reimundo, que sempre foi um ventena p'r'a vida, trabalhador que nem alimal (com perdão da palavra), ficou embeiçado por ela, desde que a viu uma tarde, passando por ali e pedindo por acauso uma xicra de café: ela, nhá Lina, trouxe o café em pessoa, enquanto a mãe o hospedava, proseando co'ele, e o Reimundo sentiu-se logo quente das orelhas, e de olhos turvos como quem firma a vista em qualquer luz muito forte. Ela era destrocida, não se avexava a dois arrancos: veiu lá de fora, onde as mulheres são desembaraçadas como quê, e também entrava direito na combersa, até rindo, quando chegava a casião.

Daí por diante, já se sabe, o Reimundo 'garrou por ela um rabicho em demasiado: ê! rabicho! cortava na subida e na descida, e dava só aquelas ânsias! Percurou saber quem era a moça, o pai e a mãe da moça: colheu logo que o pai foi sempre dos que não admitiam que ninguém lhe pisasse no ponche; e a mãe, de respeito a conta inteira. Morava lá p'r'os fundos da Pedra Branca, e pegou a tecer pela Serrinha, fazendo como quem vinha p'r'a vila, voltando quaji em seguida, feito um andante de costume.

A princípio nhá Lina pouca atenção pôs no rapaz: mourejando todo o santo dia, ela não tinha um pequeno tempo de seu p'ra bispar as pessoas que mexiam pela estrada; despois, por ele às vezes parar muitas horas nas proximidades da casa, c'uma espingarda troxada a tiracol, observou que tal parada devera de ser coisa: e, reparando que o tal senhor dão era bem parecido, pensou o que pensam as da mesma idade que ele, até agora, e foi ficando triste, como reza a história, até reconhecer consigo mesma que se ia tornando dele de tudo.

Sea Maria Rita, ûa mulher de muito tino, que sabe da vida de meio mundo p'r'esses centros de sítios todos, diz que é mesmo deste feitio que o diabo tenta os outros; ela, que diz, é porque tem expriência, e a expriência é a mestra da vida: remate que põe sempre em suas prosas, e é verdade.

O Reimundo achou lado de visitar a familiage de seu Chico Marzulão, com desculpa de ofrecer ûas marrâs e uns capadetes gordos: chegou à porta, preguntou pelo velho, arengaram muitas horas, pechincharam de mais, e por fim tramaram uma berganha, solando o Reimundo dois capadetes por um poldro castanho redomão, que era uma pintura, de estampa linda, colia e crina compostas, tábua do pescoço e ancas bem feitas, escanelado, ardoroso que nem o demo. No sábado que veiu, trouxe os porcos, tomou um café, mais um isto, mais um aquilo, e foi-se embora no romper da lua, levando o cavalo adestro, e sentindo o rumor louco do coração dentro do peito.

Passados meses, negócio vai, negócio vem, deu um vomitório p'r'a mãe da namorada, a fim de ver se saía ou não o casamento: a velha remancheou, gaguejou, fez mesuras, fez rodeios, e ele contemplou-se despachado. Tem daqui, tem dali, achou de talho a nhá Lina, um dia, e falou-lhe de vereda se queria sear a companheira dele: a nhá Lina arrespondeu que sim, que queria - era só pedir p'r'o pai.

E agora.

Topou no outro dia com o Chico perto do monjolo, tarnçou as pernas em riba do selim, que a égua sabina em que estava montado era um cachorro, de mansa, e conduziu o intento da conbersação até fazer o pedido. Seu Chico pode-se dizer que enfiou. Não: enfiar, não enfiou, mas embatucou, que é quaji, tanto faz dá na cabeça como na cabeça dá.

Vira, mexe, vira, mexe, acabou seu Chico por explicar que decerto não cabia a proposta, não havia arrumação, porque a moça era de santo, por uma promessa que ele Marzalão e a dona fizeram, duma intendência que ela, menina ainda, se achou às portas da morte, por via dum sarampo arrenegado.

E quem é de santo, não hai quem não saiba, tem sempre desastre na vida, e morre por desastre.

O Reimundo,nem bem seu Chico lhe deu adeus, chegou os garfos à catirina e saiu ventando pela estrada afora, c'uma zunideira nos ouvidos e um peso na cabeça, que até mostravam jeito de doença. Arrebentou na vila, quando menos esperava, navegou que nem um mantecato pelas ruas, sem apear em parte alguma, e fez chão pelo escurecer, aborrido, já sem altura.

Mas daí a uns par de dias, pilhando outra vez a nhá Lina de talho, foi-lhe fazendo suas queixas e exclamações; e a nhá Lina, que possuía um coração mole e vivia pendurado dos olhos dele, jurou, no fim das contas, que havia de ter toa a firmeza: e pediu-lhe que a esperasse, com firmeza por igual, porque a gente deve de acreditar piamente no ditado: não hai bem que sempre ature, nem mal que nunca se acabe.

Sea Maria Rita não é à toa que dá a entender que os namorados, quando chegam a este ponto, vão descendo, descendo, de tentação em tentação, até ficarem c'um pé na terra e outro no inferno. Mas qual, sea Maria! inferno é aqui mesmo na terra: pois vassuncê quer maior pena e mais grande sofrimento que estar um pobre coitado c'a boca n'água e morrendo à sede, ver uma canoa?

O partido conservador estava de cima, e seo Chico Marzulão era um chimango peitudo. Os liberais cá do mato arreceberam cartas lá de baixo contando por notícia que mais mês menos mês, o imperador ia chamá-los p'r'o poder: de maneiras que as eleições desse tempo iam ser brabas.

Assim que elas foram vesprando, o afamado Chico Dia mandou avisar aos daqui que havia de trazer um ajutório que servisse direito; Marzulão, que era colega do Chico Dia, meio irmão de criação dele, até ficou entusiasmado, que gaguejava e chorava quando vinha de jeito falar-se na subida dos seus. E chegou muitas vezes a bufar, inchando o papo que nem um arurá assanhado.

- Deixe correr o aço, que esses saquaremas hão de ver de que pau é a canoa, quando eu tiver voz ativa e for subdelegado aqui no distrito! Esses danados cuidam que batuque é reza, imaginam que marimbau é gaita. Eles hão de encontrar forma p'r'o pé!

Veiu o falado dia. Regulando seis da manhã, ou pouco mais, a gente do Chico Dia passou pelo alto das Três Ilhas. Cada qual dos caboclos trazia bandeirinha branca nûa mão e bacamarte na outra, e garrucha dum lado da cintura, e faca do outro lado - e caminhavam alegres, numa pagodeira. O Chico Dia, amontoado num saino de oito pés, ia na frente do povo: e se porventura o saino queria descair na balança, relava-lhe no sofragante as chilenas p'r'as paletas que era um regalo.

Seo Chico Marzulão, já de conchavo antigo, perparara a matula de noite, porque era vindouro na terra e não tinha casa p'r'assistir no povoado. Ao clarear, arreou seu macho, esperto que era um raio, e foi-se encontrar co'a caboclada do Chico Dia na volta do caminho. No instante em que rompeu juntico deles, como por um milagre, todo o povaréu gritou, que parecia uma demência:

- Aí, companheiro sacudido! C'uma parceirada em que tenha muitos desse calibre é que os cascudos verão bóia! Viva o Marzulao! Fogo no Marzulão!

E umas par de garruchas afloresceram de pólvora queimada, arriba das cabeças de todos. Aquilo eram salvas ao seu Chico e aviso à liberalada da vila: ouvidos os tiros, passada a primeira impressão, houve um rebuliço p'r'as ruas, que não acabava mais, e só asserenou quando apareceu no alto, p'ra lá da igreja, aquele mundão de gente.

Êta! eleições brabas! até hoje são faladas!

Ora por essa casião as laranjas estavam que eram uma calda, muito maduras e muito doces. E no laranjal da Serrinha, pegado co'o quintal de seu Chico Marzulão, juntava uma guaxaria que nem se podia contar. Mal e malzinho que apontava o sol, já se ouviam pela capoeirama afora os pios chupados e o rumor das asas de semelhantes pass'os.

O Reimundo, logo que viu seu Chico passar o morro que ia acabar na estrada real, veio devagar, encarapitado em sua sabina, co'o coração bate-que-bate, pedir p'ra nhá Supriana, mulher do dito cujo, licença p'ra espichar fogo nos guaxes, que na certeza andavam gordos e magníficos p'r'um arroz com tranqueira. Nhá Supriana, foi ele pedir, foi dar licença: e o freguês torou de rumo p'r'o laranjal, que era aí adiante, p'ra baixo, na virada do morrinho lançante que verte p'r'o córgo.

Daí a pouco os tiros principiaram, um em cima do outro, que não paravam mais: a mó que a troxada só descansava enquanto ele puxava os aviamentos da mucuta e enchia os dois canos. Nhá Supriana, ouvindo tamanho barulhão, assustada a mais não poder, poribiu dois crioulinhos, que brincavam no terreiro, de irem p'r'aquela direção: e encafuou-se no quarto, serzindo ûas meias de algodão, sossegada já, por pensar que nhá Lina andava p'r'a cozinha, lidando co'as panelas, e não corria risco nem um.

Nhá Supriana, em seu trabalho, dava de cantar a vida inteira. Naquele dia como nos outros, enquanto a agulha ia e vinha dum pedaço de algodão p'ra outro, saíam da boca da dona aquelas modinhas cheias de saudade, aquelas modinhas que aprendeu quando era frangota ainda, cobiçada de um bandão de moços e amante já de seu Chico Marzulão, que ao mesmo tempo gostava dela, que era um desespero. A agulha ia e vinha, o pensamento de nhá Supriana também ia e vinha: às vezes o pensamento andava mais depressa, outras vezes era a agulha - e a tarde estava caindo, sem barulho, vagarenta.

Houve uma hora, apesar de tudo, em que nhá Supriana se lembrou do mundo.

Prestou atenção p'r'o rumo da cozinha, não sentiu nhá Lina lidar mais; pegou a escutar na linha do laranjal, não percebeu mais tiro nem um. Levantou-se, chegou à cozinha: nada de nhá Lina; campeou p'r'a casa inteira, nada. E ficou de repente tomada dum susto! que estes caçadores, Nossa Senhora da Penha, chegam a por chumbo num caça mesmo em frente dos outros.

Mas assim que apareceu na janela do quintal: que gritou por nhá Lina, que nhá Lina arrespondeu e veio quaji correndo; assim que viu, p'rum recanto do rocio, passar o Reimundo meio arcado, com feitio de escondimento, no instantin' em que um coitelo riscava chita c'as asas abertas no meio da varanda: nhá Supriana achou-se mais assustada, à toa, a bem dizer, mas tremendo tal e qual um passarinho meio chamuscado.

Não disse nada p'ra nhá Lina, entrou pr'a dentro do quarto, e fez um choro largo e muito delorido, em silêncio, como quem purga pecado. No meio do choro, entretanto, lembrava-se do que fora no tempo de solteira, do juízo que tivera, e o pensamento do passado ia e vinha, como poucas horas antes, que nem a agulha de um pedaço de algodão p'r'outro pedaço. Chorou, que foi uma loucura: e assim que seo Chico voltou, já sobre a noite, encantado c'as eleições, nhá Supriana lhe falou perto da orelha, c'os beiços frios e os olhos queimando:

- Olhe, seo Chico, o primeiro desastre já foi, agora espere p'r'o outro!

E contou-lhe o que assucedera.

Quem tinha razão era sea Maria Rita: quando os namorados chegam a certo ponto...

Pois não aconteceu o segundo desastre. Seu padre vigário botou a bênção de casamento nos dois, num dia despois da missa, apesar que moça de santo deva de ser de santo toda a vida. Quando a comitiva dobrou a aguinhadas pedras, já perto da casa, no fundo do laranjal, e um casal de guaxes passou pelo ar, gritando, que não tinha mais jeito, o Reimundo falou p'ra nhá Lina, em segredo:

- Aquilo é que é pass'o bom, nhá Lina!

Ela ficou sem dizer nada. Ficou, mas em compensação pôs-se vermelha como um juá manso, na roçada, assim que o guatambú, sem dó, foi descobrir as ervas mais altas e também o descobriu.

Coisas que a gente vê neste guanhã de mundo!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 15/4/1902 (Acervo Estadão)

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