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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Soberbia

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado nas páginas 1 e 2 da edição de 13 de março de 1902 do jornal O Estado de São Paulo (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 13/3/1902 (Acervo Estadão)

 

Soberbia

Assim que apareceu no povoado a Chiquinha Araçá, vinda lá desses recantos do sertão do Panema, e que foi assistir nûa meia-água estrangolada ali beirando o rio, sinh'Anna do Ozebio não se conteve, de tanta ira, e saiu dizendo p'ra quanto vizinho havia que aquilo era uma pouca-vergonha, uma coisa sem pé nem cabeça, um despropósito. Onde é que já se viu agora uma sojeita da vida vir morar no meio das famílias, bem concha c'o seu galheiro, como se tudo fosse muito direito? Aquilo não podia continuar!

Sinh'Anna, desde pequitita, segundo todo o povo falava, fora uma soberbona de marca maior. Filha dum pai que tinha de seu fazendas e mais fazendas, culturas e criações em demasiado, não percurava as pobres, na escola, e só fazia companhia c'as das mesmas posses que ela; filha duma senhora mãe bonita e de bem que nem uma santa, falando mal, não era capaz de se avir c'as meninas que não tinham pais conhecidos à vista da Santa Igreja. De sorte que andava quase sozinha, repimpada nos seus vestidos cheios de folhos e rendas, alegre dos seus babadouros largos, de cambraia, e dos pentes de tartaruga que fincava no cabelo.

Depois, em casando, a mó que ficou mais peior ainda (assim diziam nos arredores): então só se agradava das mulheres que tinham marido legítimo e eram ricaças ou remediadas; as outras, essas vivessem lá como a Deus fosse servido. Agora o que é verdade é que ninguém nunca teve corage de romper duma vez c'a sinh'Anna: parece que a riqueza dos outros entope a boca dos pobres, e nem uma neta de Eva disse em tempo algum liberdades a tão malvada criatura. Sinh'Anna mandava seis meses no bairro, principalmente na gente de saia.

Ora a Chiquinha Araçá, morena bem sossegada, afinal, que teve por sina cair como tantas outras, a princípio não botava atenção em nada, nem em ninguém dos arredores; mais tarde reparou que aquela dona, cada vez que a via fechava carranca, saia da porta ou da janela, batendo-lh'a com fúria, e, se estava na rua, virava-lhe as costas no mesmo instante; pensou de si consigo que decerto as línguas enredeiras haviam aprontado alguma, e deu tempo ao tempo.

Contou o caso ao galheiro um tal Zé Benedicto, e o galheiro respondeu-lhe que não se importasse, porque, quando fossem por o feijão no fogo, sem dúvida não o pediriam à dita, dona.

E ficou tudo nisto.

***

Paulista desempenado era o Zé Benedicto, é lá paulista! Por seu respeito um dilúvio de raparigas andavam de coração sangrando, aí nesse mundo louco donde eles vieram; uns tempos ele foi o susto das casas sérias, transtornando o sossego de muita rolinha solteira, e cansando o desespero de muitos casais; viveu mexe-mexendo pelas capelas, anos e anos, e aprendeu uma pelintragem que bulia c'o sentido das tais, fazendo-as enlouquecer de tudo; rodeava uma delas, arrastava a asa, chegava... e logo sumia p'r'os braços de outra, volúvel que nem uma borboleta.

Mas garrou rabicho de couro cru pela Chiquinha Araçá, viúva noviça que morava de favor duns tios, conduziu co'ela p'r'o Salto, num batelão, e veio p'r'esta terrinha do Andrade: daí para cá o Zé Benedicto ficou outro, bem se via.

Pegou logo c'a santa vida daquelas furnas lá de longe.

Como violeiro, Jesus! - era cumba; cantava cada verso tão bonito, p'ra encarrear as modas, que até o povo que escutava era só pedir - pedir p'r'ele cantar mais um, mais um, mais um; quando rompia daquela garganta uma pelenga das que ele usava, bem toada, bem afinada, como ele sabia, as pedras eram capazes de rebentar, principalmente pelo amanhecer. Assim falavam todos os fandangueiros daquelas furnas: e em Santa Cruz a mesma fama cresceu depressa, aumentou, p'ra dizer mal, que nem as pragas dum pasto praguejado.

Mandou o Delfino do Ribeirão fazer-lhe uma viola e, se bem mandou, melhor o Delfino fez: cada vez que o Zé Benedicto rasgava o pinho, dum jeito novo que ninguém tinha visto ainda, um meio arripio passava p'r o corpo de quem estava perto. Depois, p'ra pontear uma dança qualquer, p'ra tocar uma quadrilha ou a valsa-viana, andava sozinho. Gente principiou a descer da Serra, p'ra ver o violeiro descanhotado que fazia o que queria do instrumento.

A Chiquinha, então, sentia-se alegre deveras, por ver que o tafulo ganhava rumo na praça: porque a melhor maneira de se começar direito um negócio é agradar bem primeiro o freguês: e quando ele quisesse meter cara nessas invernadas, comprar seus bois magros p'ra engorda e venda mais tarde, barganhar seus caracus e gigantes c'uns par desses chinas do corte, havia de encontrar simpatia por toda a parte. (A Chiquinha Araçá bem se vê que tinha proporção de uma pura mulher: foi uma desgraça desgarrar assim sem mais nem menos. Agora...)

Só o que não dav certo era o semblante sempre fechado da sinh'Anna do Ozebio. Um dia que se encontraram por acauso no cochicolo dûa mulher chamada a Mineira, pertico mesmo do rio, sinh'Anna afastou-se p'ra dentro do quarto da dona, fazendo o sinal da cruz; outra vez que a Chiquinha topou co'ela no porto em que lavava roupa, a sinh'Anna escondeu o rosto num lenço de cabeça, e saiu ventando por ali fora; ultimamente, na reza dum tal Bonifacio, lá da outra banda, a sinh'Anna deu adeus p'ra todos que se achavam na sala e, passando pela Chiquinha, virou o frontispício e não lhe estendeu a mão.

Valeu isso botar-se a pobre da moça p'ra casa, já no meio da noite denegrida, atirar-se a um catre e prantear feito uma demente. Fazia exclamação que Deus devia tê-la matado no instante que lhe aconteceu tamanha infelicidade, que as outras viviam na satisfação de todos, e que ela, a bem dizer, andava escorraçada. E como o Zé Benedito entrasse nesta intendência e pusesse atenção naquelas lástimas, respondeu-lhe por estas palavras:

- Ora, Chiquinha, isso não paga a pena! Pois p'r amor de a sinh'Anna do Ozebio você toma tamanha tristeza? Olhe que ela nem merece essas lamúrias! Você vai conhecer que bagaço de gente'tá ali: espere pela pancada! No frigir dos ovos é que se vê a manteiga que sobra!

A Chiquinha Araçá, com tais conselhos, achou-se mais consolada, foi-se repondo pouco a pouco. E ficou tudo nisto.

Não há nada mais certo: quem fala, paga. Outros proseiam que pela boca morre o peixe. O que é mesmo verdade é que ninguém deve dizer: desta água não beberei.

O Ozebio, que tinha umas terras na fazenda de S. Domingos, a tal que verte p'r'o Rio Pardo, compra antiga que fez dum fulano Izaú, arrasara mato, nessas eras p'ra traz, fizera cada derrubada e tanto, plantara cada roça de encher os olhos. Nunca lhe faltara milho, num paiol de cinquenta carros, por derradeiro foi preciso até fazer um puxado no dito paiol, p'ra dar cabida a mais uns trinta; arroz, era um despotismo; feijão, ché - ninguém colhia a quarta parte do que ele colhia; abóbras, pepinos, maxixe, jacutupé, tudo se via com abondância naquela casa; e a pinga de vinte graus que alambicava, sempre firme e de boa fama, varava ano e mais ano, a mó que sem acabar nunca. Farturama semelhante, é coisa por demais!

Mas a resto vem a medição da fazenda. Os homens que requereram a repartição reviraram quanto cartório havia por aí fora, por Lençóis, Itapetininga, Santa Bárbara e Botucatu, e os papéis da gente conhecida pelo nome de Izaú ficaram não valendo nada. Houve reiva, quasi saíram pancadas e mortes, e quem ficou deveras na derrama foi o pobre do Ozebio, sem um palmo de chão de seu. Nem bem soube que o negócio estava desse feitio, tão mal parado, o Ozebio esfregou as mãos na cabeça, c'um desespero de mantecato, e disse que ou havia de passar uma chumbada no Balthezar e outra no Chico Gracia, que chamaram a divisa na fazenda, ou morria sem apelo nem agravo.

Não aconteceu tão depressa, mas aconteceu o que ele porferira. O Ozebio o que sim fez foi desmerecer de repente; ficou logo nas espinhas, de magro, e banzativo e soronga que dava que pensar. Saiu dia, voltou dia, até que chegou o último daquele filho de Deus; contam que morreu de mal de engasgo, mas qual! - foi tristura, desânimo, falta de confiança nos braços e na cachola.

Na madrugada em que esticou os cambitos, o miserável inda resmungava, por jeito que todo o povo que o rodeava escuitou: que assim ficava melhor, sumir-se duma vez deste mundo, p'ra não aguentar mais o peso de tamanha desgraceira!

Sinh'Anna, p'ra dizer que pranteou em demasiado, isso não: choramingou seu pouco, enxugou suas lágrimas p'r'um canto, fez por consolar-se, que enfim o que está feito já não está por fazer. E na missa do sétimo dia apareceu com um senhor vestido de seda cheio de histórias e um crepe na cabeça, que mais parecia esses veuzinhos de luxo das moças. É p'ra mecês verem o quanto vale a firmeza de certas mulheres!

Quando chegou o tempo de aliviar o luto, já a sinh'Anna estava aliviada de tudo, no coração; deu de usar uns vestidos maneiros, brancos e só c'uns respingos pretos, umas saias escuras e uns casaquinhos cor de pomba de casa, pegou a ficar numa ponta que até era de por a gente admirada. Povo garrou logo a dizer que a sinh'Anna estava atirando a rede p'r'algum frango novo, senão não havia de andar assim nos trinques, entusiasmada, sem nem um restico de tristeza nos olhos e na fisionomia.

Voz do povo é voz de Deus. A sinh'Anna refiava um Jeroninho lá do Dourado, paranista cheio de não-me-toques, enjoado numa conversa e namorador por devoção antiga. Ele, então, quanto mais corda ela dava, mais corda puxava. Vinha todo domingo pescar aqui na vila, montado num macho ruço que era um mundo: e se ele Jeroninho era contador de histórias duma vez, o macho não ficava atrás, tinha um passo esquipado dos dianhos, e levantava as mãos no lançante, a desmunhecar-se.

Primeiro foi o namoro direito, com todo o juízo: p'r'o paranista era só aquela soneira, e p'r'a sinha'Anna a mesma coisa. Mas o inimigo intreverou-se no meio, tentou a sinh'Anna, até que ela não teve como não acreditasse nas patacuadas que o Jeroninho lhe contava, e fez-lhe uns adeantados por conta do casamento, que havia de vir logo que ele perparasse os documentos percisos. Foi uma regalia! Ele gozava, que gozava; ela gozava, que gozava - e o mundo principiou a treler c'o negócio, que se via atrasado. Umas pessoas chegaram a dizer p'r'a sinh'Anna:

- Olhe, criatura: casamento demorado é desmanchado.

A sinh'Anna a mó que não vivia mais na terra, nem deu fé.

Passaram-se uns par de meses. Um dia, sem mais aquelas, o Jeroninho abriu o pala, cortou chão; sumiu, ver uma onça espavantada, p'r'esses fundos de sertão de Mato Grosso, ninguém mais lhe pôs a vista em riba.

A sinh'Anna chorou, que foi uma grande pena. Depois, consolou-se, tal e qual como quando o Ozebio morreu. Ora, se o que está feito não está por fazer! E ficou tudo nisto.

No dia em que a sinh'Anna estava c'as dores, fazendo uma gritaria angustiada (porque afinal o presente que o Jeroninho lhe deixou foi uma esperança, nada mais), nesse dia a Chiquinha Araçá, vestindo-se c'o vestido mais ventena que possuía, entrou-lhe pela porta a dentro, sem mais nem menos, foi até ao quarto onde ela gemia, que causava piadade, e falou-lhe por este jeito:

- Sinh'Anna, agora que nós semos iguais de verdade, se mecê não tem mais soberbia, ouposso vir-lhe assistir, com todo o gosto. Mecê sabe que a gente veve na terra é p'r'ajudar seu semelhante.

A sinh'Anna não disse sim nem não: já estava c'a dormideira, mal ouviu aquela voz que parecia vir de muito longe, apagada e mansinha, e, quando voltou a si, foi p'ra pedir à outra ûa mão naquela hora apertada. A Chiquinha encostou-se-lhe às costas, segurando-a por debaixo dos braços, depois de a ter feito sentar numa quarta, e deu de contar-lhe histórias engraçadas, pilhérias de fazer rir bastante, um passatempo e um consolo. Uma hora que lhe estava repetindo a passage que aconteceu c'o Theadorinho, quando foi camarada do padre Aranha, num ajutório tirano p'ra certo carreiro que estava c'o carro atolado na Água Espraiada, a sinh'Anna riu que foi uma coisa de espantar, no meio mesmo das dores, e a criança nasceu como por encanto, botando a boca no mundo.

A Chiquinha continuou a fazer-lhe animação:

- Pois ansim é que 'ta direito e que 'tá bom. Onde é que já se viu uma dona como mecê, forte e sacudida querendo entregar agora a rapadura c'a palha e tudo? Isso inté nem tinha cabimento!

Mas a sinh'Anna descaíra p'r'uma banda, meio desmaiada, c'os olhos afundando e um suspiro saindo de lá bem de longe, puxado de vagarzinho e fracamente: foi perciso aquentar-lhe uma pinga, e a Chiquinha, depois de bebida a pinga, inda caçou c'a doente:

- Ué, sinh'Anna, é agora que amarelia antão a sola do pé? Largue mão disso, crie corage: repare nesse boizão do seu filho e vigie que ele já 'tá com fome! Repare só!

Pouco a pouco, assim como quem vem chegando muito cansado, duma viage cangotuda, a sinh'Anna foi abrindo os olhos, ficando outra vez co'as cores, e quase que chegou a rir. Mas o outro não nascia, a Chiquinha tomou-a outra vez pelos braços, mandou que ela fizesse força e rezasse três vezes a oração de Santa Margarida, que é a última p'r'esta necessidade:

- Santa Margarida... Santa Margarida... Santa Margarida...

A sinh1Anna mal chegou a rezar a terceira vez. Estava livre. Olhou em roda de si, não viu mais ninguém que não fosse a Chiquinha Araçá, teve uma saudade do tempo em que vivia cercada da flor do povo, uma gana louca de Jeroninho, e principiou a chorar baixico e sem falar nada.

A Chiquinha, depois que arranjou a cama e os travesseiros e pôs a criança em riba dûa almofadinha, perguntou serena e sossegada:

- Antão, sinh'Anna, a gente se ajeita bem é c'os pobres e c'as mulheres que vevem na tafalaria, não é?

E foi-se embora. Quando já tinha desaparecido, quando o som dos passos já morrera na volta duma esquina, a sinh'Anna pegando o filho e abraçando-o falou consigo mesma, tal e qual como quem fala com alguém:

- Mas porém não sou da sua relé, saracutinga! Ao menos inda tenho esta criança, coisa que você nunca teve e nunca mais há de ter na terra, mulherzinha rebelde!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 2 do jornal de 13/3/1902 (Acervo Estadão)

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