Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult049z5.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 08/30/12 23:16:32
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
(A)Maldiçoada

Leva para a página anterior

Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição de 10 de fevereiro de 1902 do jornal O Estado de São Paulo (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 10/2/1902 (Acervo Estadão)

 

Maldiçoada

Fazia muito tempo que a noite caíra, uma noite de assustar, escura e cortada de relâmpagos; a ventania gritava pelo meio das laranjeiras, espalhando as flores que tinham rebentado aqueles dias mesmo; o rio, que de costume é sossegado ao fundo do quintal do Furtuoso, buzinava de fúria, levantando montes de água que vinham quebrar-se no porto c'um grandioso rumos: e escutava-se, através da barulhada, toda como se fossem gemidos e queixas, os mios duma coruja das grandes que andava desguaritada lá no alto do espigão que vem verter p'r'o rio perto da ponte.

Sá Chiquinha estava esperando o Tito, encostada à janela do lado direito: cerrara as folhas da janela, ficara quieta duma vez, segurando a suspiração, de puro medo. Agora, ouvindo a matinada da coruja e reparando na escureza dos ares, teve uns repentes de tramelar a janela, e deitar-se, e morrer; parecia-lhe adivinhar um infortúnio, em tanta coisa triste que via.

O Tito queria-lhe bem, decerto queria -, porque, p'r'um home jurar contra sua alma, como ele jurava, só tendo muita fiança no juramento: mas o futuro aparecia-lhe do mesmo feitio que aquela noite denegrida.

- Como é que há de ser nho pai?, pensava: e umas par de lágrimas garravam a correr-lhe pelo rosto abaixo. Na verdade, o Nico de Souza, pai de sá Chiquinha, não desejava nem ouvir falar-lhe no nome: ganhara-lhe ódio à toa, p'r amor de uns ditérios de gentinha de pouco mais ou menos, dessa gentinha que murmura dos outros sem mais que nem p'ra que. Desconfiado, isso o Nico de Souza vivia desde a festa de seo Baptista, porque bem pôs atenção nos olhos doces que sá Chiquinha fazia p'r'o Tito e o Tito fazia p'ra sá Chiquinha.

A moça fechava-não-fechava a janela, quando lhe bateu nos ouvidos o som de um pio de tico-tico: remancheou um bocadinho, como se estivesse resolvendo um bandão de coisas num momento só, inzonou co'a mão direita em riba do coração que funcionava louco de tudo, e depois, devagarzinho, pouco a pouco, afastou de junto do ombro a folha esquerda: seu vestido era branco e sem peso, vestido de nem um resguardo, quase que só de calor, e o vento aspro que veio de fora por um triz não a pinchou p'r'um canto do quarto.

Pregou os olhos no rumo da esquina, ali onde para o poste de um lampião velho, divulgou um vulto encapotado que caminhava p'r'ela, viu-o vir chegando, chegando, até rentear c'a parede da casa, tendo pulado um tirãozinho de cerca baixa que havia na linha da frente: e daí, notando aquele vulto, já não sentiu mais o coração funcionar veloz e violento: pelo contrário, o coração foi-lhe adormecendo de tal jeito, que logo desmaiou que nem um passarinho, assim que vê fechar-se sobre ele um gavião desses quiris-quiris, c'as unhas prontas e as asas espontadas e o bico aberto numa proporção.

Sá Chiquinha dcaía-não-caía, quando o Tito lhe falou umas palavras de animação e de muita amizade: ora o que havia de ser, que tanto a amedrontava? a chegada do seu bem, ora o que havia de ser... Ele pegava-lhe na mão direita, a mão que ainda lhe permanecia em cima do seu peito, e ia dizendo certas prosas muito boas, muito mansinhas; no fim das contas, feitos carinhos e mimos, ela recobrou a voz e respondeu-lhe no mesmo tom, em segredo, cochichado, um dilúvio de bonitezas. E já nem sabiam mais que a trovoada se formava ao longe e a tempestade havia se de despenhar por força: namorado, olhando os relâmpagos, mas porém perto da namorada, a mó que está vendo fogo de estúcia.

De repente, um redomoinho rompeu pela rua, abalando as chanchumas e os fedegosos, rufando nas telhas, querendo quebrar as vidraças e arrombar as portas: o mio da coruja das grandes, comprido como nunca, morreu c'a primeira abalroada do redomoinho, no fundo do covancão macota das terras do Ziquiel: e sá Chiquinha, tapando os olhos, tonta de assombro e de terror, ia ter uma vertige, se o Tito não a amparasse, dando-lhe um empuxão forte no corpo.

A chuvarada desencadeou-se, vêr um rio que desce pela cachoeira, grossa e atroadora; os relâmpagos riscavam toda hora o céu, do nascente ao poente, cor de enxofre e sumindo como por encanto.

A água das enxurradas soluçava de raiva, rasgando-se tal e qual farrapos de renda, nas pedras e nos tijolos esparramados pela rua; o grito rouco dos trovões correndo nas costas das montanhas, acabava pela claridade dos coriscos, e a claridade dos coriscos acabava pelo grito rouco dos trovões: e às vezes os coriscos, mostrando ares de zanga, davam pulos no meio das nuvens, amarelos e ligeiros, similhando um terno de caninanas. Ao depois, o firmamento voltava a ser feio que nem uma barra de chumbo sem fim.

De supetão, num abrir e fechar d'olhos, a porta do quarto de sá Chiquinha escancarou-se: a luz buliçosa duma candeia apareceu, tremendo ainda mais p'r amor de o vento; e apareceu a cabeça do Nico de Souza, branca, meia na sombra, adonde os olhos brilhavam como os dum gato escorraçado: nha Cesara, passando a mão pelos óculos, desatinada de espanto, mostrava as feições do rosto por cima do ombro do marido: e enquanto sumia o zunido fino da arage da chuva no covanção macota da outra banda do rio, e o rumor da tempestade assocegava seu pouco, também no quarto de sá Chiquinha se fez um silêncio de quarto de defunto.

O Nico de Souza botou a candeia num mancebo, a par c'a porta; fechou os olhos e tornou a abri-los, olhou e tornou a olhar, como se lhe parecesse impossível acontecer o que estava acontecendo; encostou-se ao portal, bambo e sem corage, segurou a mão de nhá Cesara e desatou a chorar; nhá Cesara passou-lhe os braços em roda do pescoço e prantoou com feitio de lhe ter morrido alguém.

Sá Chiquinha perdera o sentido, e o Tito, assim que os velhos principiaram suas lástimas, pulo p'ra janela, com água até os joelhos, e foi ficar sondando arretirado, junto do posto do lampião. Tinha passado o mau tempo, a ventania sucumbira, apareceu a minguante num pedaço denegrido do céu. A água das enxurradas, rodando mais devagar, com mais preguiça, murmurava baixico umas vozes de candonga. E a coruja das grandes, que se calara um tanto de espaço, miava agora outra vez, esquisito e soturno.

Foi então que o Nico de Souza pôde desafogar-se:

- Saia de tudo, filha maldita! Acompanhe esse desgracionado que lhe roubou o seu coração! Nunca mais cruze os umbrais da porta desta casa! Saia d'ua vez, filha maldiçoada!

Sá Chiquinha, como acordando dum sono de muitas horas, por efeito de um pesadelo, saltou p'r'o meio do quarto e pôs as mãos em forma de cruz:

- Não me toque, nho pai: não me toque, porque eu não devo crime nem um!

E o Nico, sem dó e sem piedade, respondeu-lhe estas palavras:

- Saia, desgraçada, saia desta família que nunca viu ûa mancha como a que 'tá vendo!

Nada puderam seus peditórios, nada conseguiram seus rogos: por derradeiro, quando viu que não podia esperar cabida naquela casa, foi beijar a mão da mãe. Nha Cesara retraiu-se, pranteando. Sá Chiquinha chegou ao oratório, adonde morava uma Nossa Senhora Aparecida de olhos cheios de bondade e capa azul trançada no corpo inteiro, ajoelhou-se, c'o a garganta numa sufocação, tirou do oratório um ramo de palma benta e um arrelique de baetinha preta, e pegou a mexer a boca, rezando desanimadamente.

O Nico bradou-lhe espótico:

- Vá-se embora, juruveva da rua! que ûa mulher como você nem pode e nem deve rezar! Vá-se embora, maldiçoada!

Sá Chiquinha saiu. Esperava-a na esquina o Tito, que a chamou por assobio: mas antes de se encontrar com ele, sá Chiquinha, que o ar da noite a mó que animara de soco, rugiu uma espécie de rugido horroroso que nem de fera, e disse:

- Maldiçoada é que eu não saio! Misericórdia!

Disparou no rumo do Rio Pardo, que lá em baixo, espumando e roncando, amostrava estar pelas turinas: e foi por causa de tamanha espumarada e roncaria que não se pôde ouvir o baque de sá Chiquinha naquele poção fundo do beco. A coruja das grandes remontara, miava agora no chato do espigão, com seus mios mais compridos, cada vez mais esquisito e soturno; e o pobre do Ziquiel, que há muito tempo está fora do juízo, veio a tão feias horas visitar a tapera em que morou, e dava cada gargalhada tão alta, que subia até ao chato do espigão e descia até a última corredeira da segunda volta do rio.

Nem bem amanheceu, já saiu gente em procura do corpo: aprontaram uma gamela c'uma vela dentro, acenderam a vela, e aquilo foi descendo feito uma fantasma pelo rio afora. Quando deu meio dia na cadeia, pouco antes, pouco depois, a gamela girou duas vezes perto dum canal que desemboca num mansão de quatro braças, p'ra cá um pouco do engenho, e parou direitinho na vizinhança duns guapés.

A canoa da procura chegou, os homes bateram varejão pelos guapés, cutucaram as raízes, e depois, campeando bem por debaixo da gamela, encontraram sá Chiquinha, que assim que surgiu à flor d'água assombrou a todos, por estar tão desfigurada.

A canoa voltou, rio acima. Quando chegou ao porto do Nico e puseram a moça numa rede p'r'a conduzirem p'r'a casa de morada, era só grito e choro que se ouvia por toda a parte, de mulheres e crianças, gente que até não tinha nada c'o acontecido.

Tem daqui, tem dali, mais isto, mais aquilo, diziam mil coisas a respeito da finada; e o que maiormente havia de doer à pobrezinha (se quando se morre ainda se escuta o que os mortais porferem), era dizerem que a morte não passava duma complicação. E rematavam por esta maneira:

- Não podia apanhar chuva, apanhou; tomou umidade, o sangue subiu-lhe à cabeça, a coitada por isso ficou demente...

O sol já estava a umas três braças p'ra mergulhar naquela morraria sem fim, quando saiu o enterro. A tarde era uma tarde triste, sem canto de passarinho, sem voz de ninguém p'r'as ruas, sem vento que tremesse as árvores. Só uma tapena voava muito sereno em riba da vila, fazendo vagarosamente suas curvas duma banda p'ra outra, co'a cauda ora aberta e ora fechada.

Um caminhante que tinha saído da morte e olhava o enterro que ia passando, falou p'r'um dos que vinham mais atrás:

- No meu tempo, uma gente que se matava não tinha lugar no çumitério, ficava p'ra fora do sagrado.

Mas ninguém disse nada, o que tinha recebido a fala mal apenas teve como resposta um gesto de amargura e de sofrimento. E sobre a grande tristeza da tarde se foi ornando o grande desespero da noite.

Valdomiro Silveira

(Os caboclos)

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 10/2/1902 (Acervo Estadão)

Leva para a página seguinte da série