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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Naquele fundão!

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição de 6 de dezembro de 1905 do jornal O Estado de São Paulo (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 6/12/1905 (Acervo Estadão)

 

Naquele fundão!

Estavam sentados no banco, desde pela manhã, como duas crianças numa gangorra: o Arthur muito zangado, quebrando a cada instante o chapéu na testa, mordendo a cada instante os beiços, e urrando que nem um marruás causado; o Chico Ferraz muito lambido, piscando os olhos de satisfação, e correndo a mão direita, sossegadamente, pelo peito ossudo.

Nunca se vira o Arthur numa disgra tão grande! Tinha apanhado até os dentes, só lhe faltava perder com dois três: e agora, nem bem o Chico Ferraz cheirava as cartas e bufava sem olhar o que vinha, já ele ajuntava a criançada e fazia chão…

Depois, a quizília já não era pouca: além de nunca lhe sair uma cartada que prestasse, porque ou lhe caía tudo nas unhas, ou nada, o Chico Ferraz ficara cada vez mais ganjento, fazia galhofas de todo o jeito, arrastava um surrão danado e ria, de olhos pequeninos, feito um gambá na pinga. Chegou a cantar-lhe nas fuças:

- Eu fazia que o dito do povo é prosa, quando diz que truco-de-mano dá mal-de-Laz'o: mas porém 'tou vendo que não, porque o seu nariz 'tá ficando vermelho, e a papada pendendo, e as orelhas engrossando. Tome tento, nhô Arthur!

O Arthur pegou no baralho roncando feio:

- Agora sou eu que mando! Vou atrás das minhas percas, você vai ver! Tenho andado ruim, isso tenho, inda mais porque você, cada passinho, 'tá-me enfezando a conta inteira: mas contanto que eu sou um cabra quéra, não tenho medo do Cuca, nasci no dia e não na vesp'ra!

Animou-se a trançar o baralho, um tanto xavié:

- Você agora é que vai saber direito que birimbau não é gaita! Eu no pé, sou tigre da malha miuda…

Mas correu a queda, no meio duma grazinação constante, e o Arthur saiu perdendo longe! Contaram-se os dentes de catetinho, viu que o divertimento já lhe entrara pelo bolso em vinte notas, levantou-se:

- Home, não é que a coisa doeu de devéra, seo Chico Ferraz?

O outro riscava as unhas na madeira, contente e descuidado:

- Qual o quê! Nem por isso! Antão vinte ferros é chuva p'ra quem tem ponche tão bom?

- Pois olhe, seo Chico: eu sou daqueles que não engole, o que já foi dito: juguei, perdi, pago: o que sim perciso é duma esperinha, porque o tacho, como você sabe, anda vasqueiro a mais não poder.

Como chegasse à porta do terreiro, o Arthur viu a Sete-Copas deitada, a esmoer o último pasto, com a enorme pança a mostrar as curvas do bezerro quase a nascer:

- Se você quer fechar um negócio, fechemo 'já. Eu tenho aquela novilha que 'tá mojando, chegadinha a dar cria: quer a cria p'ros vinte?

O Chico Ferraz saiu ao terreiro, pôs-se a olhar demoradamente para a salina:

- O touro, que sorte tem?

- É um bichão pintado, do berro grosso e rouco, munarcha duma vez.

- De boa nação?

- De boa nação e muito leiteiro.

A Sete-Copas levantou-se, caminhando devagar para a aguada: e a carga, que levava, já não era mais do Arthur.

Na força da nova, a novilha derreteu-se. Procura daqui, campeia dali, afinal o retireiro foi achá-la num campo coberto, duas léguas adiante da morada, entre indaiás de talo morrudo e mangabeiras. Estava desbarrigada, tosando moitas frescas de capim-flecha, mas, como logo falou entre si o retireiro, não dava definição da cria.

Mostrava um ar de soberano sossego, e apertou as ventas olhando para o Bonifácio: mas assim que ele puxou pelo embornalzinho de sal, enveredou no rumo dele, cobiçosa e ansiada.

Comido o sal, troteou para o córrego, bebeu tempo esquecido, saiu da água e deitou-se a uma sombra de ipê. O que fez dizer ao Bonifácio:

- Ahn! Você 'tá marralheira comigo, 'tá escondendo o filho, não é? Pois olhe, sea cuja: p'ra velhaco, velhaco e meio!

Como tinha feito o campeio todo a pé, cuidando que a Sete-Copas não tivesse alongado tanto, pôs os aquinho de algodão à cinta, cortou uma vareta de indaiá, depenou-a à faca, e voltou para a estrada-real, cantando e recantando. O campo era meio lançante para o lado do córrego: ele dobrou a lombada como quem se fazia ao caminho, ergueu-se nas pontas dos pés, viu a vaca deitada, e amoitou-se:

- Agora, p'ra mim ficar um eito de horas aqui, sem não pitar nem nada, é que é o dianho! Se a tranca da pintadinha enxerga um fio que seja de fumaça, é capaz de não abrir daquela beirada de córgo!

Mas a Sete-Copas, enfim, houve por bem levantar-se, armou uma carreira desarranjada pelo meio do cerradinho, e entrou numa reboleira e gabirobas eradas. O Bonifácio apartou-se da moita onde estava, pendeu para o córrego, passou-o, e vizinhou da reboleira de repente, granando os olhos no escuro da folhagem. E o bezerro apareceu-lhe encolhido e mole ainda, entre as tetas pesadas da mãe, mamando às cabeçadas e recuando de pedaço a pedaço. Agachou-se, olhou bem:

- E o bezerro é uma vaquinha, já se viu? Nhô Arthur é que há de ficar nas alegrias, p1r amor de esta notícia: uma filha dum cuiabano tão leiteiro, ver o touro que anda cucambucando p'r estas invernadas, há de ser vaca de truz!

Voltou-se, agora de uma vez, para a estrada ral, caminhou a passo de carga e, quando se aproximou da morada, foi logo de longe gritando:

- Ê! Nhô Arthur! A cria da Sete-Copa' é uma novilhinha de flor! Despois de muito custo, fui topar c'a velhaca a mãe naquele fundão da bocaina, lá no retiio velho – vancê sabe! – fiquei na espreita um bandão de tempo, inté que a pintada despencou p'r'um embromado de gabirova, onde tinha feito a cama. A cria é salmilhada, uma boniteza! – chumbadinha que nem um cachorro perdigueiro, desses de hoje em dia, e'tá com tuda a saúde.

O Arthur chegou ao terreiro:

- Antão você deixe refrescar um pouco, ensilhe um alimal quarquer, ponha a bezerra no santo-antonio do lombilho, com jeito e cuidado, e traga a família inteira…

O sol já ia virando.

Sobre a tarde,quando o Bonifácio ia chegando ao campo-coberto, viu que o Chico Ferraz andava rebuscando aqui e ali, como um meleiro, e atinou logo que ele queria saber o paradeiro da salina. Já tinha visto de longe, com o cabo amarrado a uma árvore, o mouro do outro: e notara que o Chico Ferraz vinha tomando o rasto da novilha, desde certo tirão:

- Não é que o dianho do home é um ambicioneiro das dúzias?

Lembrou-se do trato feito, magoou-se por saber que a bezerrinha iria parar a outra fazenda, fora do seu cuidado: e os olhos, pouco a pouco, se lhe foram enchendo d'água, e escurecendo e queimando. Levou um pedaço de tempo sem ver nada, muito alheio a tudo, mas passou a manga da camisa nos olhos, sacou o chapéu da cabeça, alisou os cabelos, bateu o chapéu no alto da testa:

- Mas porém é 'toa! Tu não há de por os olhos nessa lindura de bichinho, ambicioneiro! Tu há de mas é ganhar a vida doutro jeito, a troco de jogo é que não! Si o dono do gado fica de repente azoretado e larga mão do que é seu, sem dor nem uma de coiração, o retireiro 'tá aí, que não deixa a criação no desamparo!

Pegou a rezar e a fazer benzimentos para o ar e para o chão, tremendo os beiços e resmungando. O Chico Ferraz bem que reparava na areia do campo, uma banda e de outra dos facões, nos trilhos abandonados e por debaixo das árvores: o rasto sumira. Entrou a entontecer, a sentir que ia dar-lhe uma coisa, a ter uma bruta zunideira nos ouvidos.

Voltou-se para o mouro, montou a cavalo, saiu num galopinho para a estrada real.

E estava tão apavorado, vendo que a noite era capaz de cair-lhe no meio do caminho, que apertou o cavalo nas esporas, rompeu de rijo para a frente, e o galopinho desandou numa disprada.

Foi então que o Bonifácio chegou à reboleira de gabirovas, fez negaças à Sete-Copas, usou de toda a destreza, fugiu o corpo agora, para depois encostá-lo quase à novilha, pegou na salmilhada, montou a cavalo e abriu:

- Ué, Sete-Copa! Você magina decerto que eu hei de te largar, e mais a tua filha, neste ermo soturno? Isso é que nunca dos nunca! Não se azangue, nem faça terramotes: eu já tirei a proa do Chico Ferraz, que'tava aceirando cada moita, cada tonceira, p'ra te descobrir, e era um home de alma feita: não hei de agora ter batedeira de queixo por via de uma vaquinha mansa, que nem não sabe pensar e não é capaz de querer mais bem a cria do que eu quero!

A Sete-Copas aquietou-se, mugindo fracamente, e seguiu a trote seco ao lado do cavalo, farejando-lhe a tábua do pescoço. A noite ia fechando: faziam-se longas as sombras pela estrada, e as corujas negras principiavam a miar no coração da mata. O Bonifácio fez estacar o cavalo:

- Olhe, Sete Copa': foi lá naquele fundão que eu aprontei a minha gronga p'r'o Chico Ferraz. Agora ele que venha neste retiro de cá, si for gente: nós há de ver o que é que pode mais – si é a loucura dum ambicioneiro, como ele, ou a amizade dum capataz de criação, como eu… O mundo é mesmo de quem pode mais…

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 6/12/1905 (Acervo Estadão)

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