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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Na estrada

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição de 27 de março de 1905 do jornal O Estado de São Paulo (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 27/3/1905 (Acervo Estadão)

 

Na estrada

Posto o dobro no alto da cangalha, e acochado, finalmente, o ligal do último burro do lote, o Vadico deu um assobio, varejou o ar com a açoiteira comprida, de louca, e a tropa arreada abalou. Caía um chuvisqueiro leve, e os caminhos iam ainda encharcados das derradeiras águas. Olhando para os arvoredos de ao pé do rancho, enquanto cercava, a galope, um picaço desguaritado, o tropeiro gritou para o camarada capataz:

- Bamó apertar um pouco a mulada, sinão temo' que ficar embarrancados nalgum pedaço feio, porque não firmou: repare a folha da mexerica como 'tá tuda virada!

De feito, duas laranjeiras que havia na tapera, junto do lagrimal, pareciam ter pendidas as copas, e encrespavam as folhas úmidas, por onde passava, de vez em vez, tremendo-as, uma aragem vagarosa. E as taiobas, carregadas de orvalho, curvavam-se até o chão escuro e liguento de massapê. À estrupida que fez o picaço, tornando ao lote, dois preás pularam de entre as taiobas para o claro da aguada, e ficaram quedos, um ao lado do outro, escutando: depois, como o tropel sumisse ao longe, ergueram as cabeças, piscaram, farejaram demoradamente o ar da vargem, e deram de comer a grama-seda do limpo, numa delícia repousada.

O Vadico, entretanto, puxara pela japona de duas vistas, vestira-a, quebrara o chapéu em cima do nariz, porque a chuva tinha aumentado, e afrouxava um cigarro de fumo faxineiro, com dificuldades sem conto; pegou no isqueiro, bateu com força o fuzil na pedra nova, que floresceu de chispas vivas, e a estopa amarelou toda, instantaneamente; chegou-lhe o cigarro, acendeu-o: e logo, na tristeza fria da caminhada, foi rompendo para o céu a alegria quente da fumaça, em rolos.

A tropa avizinhava-se de um tijuco. Havia, espalhadas por cima do barro preto, folhagens de sucunduí e de timbuva. Tocando as nove cabeças para um desvio, o capataz bradou ao patrão, já meio aborrecido:

- O princípio é bom, nho Vadico! Desde aqui já se topa atoleiro! Que dirá p'r aqueles fundos de grota das sofraldas?

O Vadico olhou para além, para as sofraldas da serra, onde eram de temer as grotas e os caldeirões da mata virgem, os caminhos-fundos e os facões traiçoeiros, os taimbés de pedra lisa que caíam a prumo sobre despenhadeiros. O horizonte encurtava-se: com a chuva, cada vez mais espessa, o mais que conseguia ver, nos mais próximos cotovelos e encruzilhadas, eram as braúvas de tronco rijo e os bracuís de copa cerrada, que sumiam fantasticamente na claridade assombrada do céu. E respondeu ao camarada:

- Sabe o que mais, seo Zé de Mello? Si nós não puder' hoje bater a tropa na cancha, escoramo' o tempo na Vendinha, e fazemo' aminhã madrugada mais forte.

Mas o tempo ia de mal a pior. As nuvens, de instante a instante, abriam-se, e por elas perpassavam dezenas e dezenas de caninanas em fúria. Dos recantos da mata partiam rumores surdos, como de cachoeira afastada. Uma capela de bugios, empoleirada algures, antes da assentada do morro, berrava soturnamente, com um pavoroso despenhar de vozes fatigadas. E o firmamento, de alto a baixo, como que se tingira todo de frutas de piúna moídas.

A tropa ia trocando as orelhas, espaventada. A cada rabisco de relâmpago, a cada rouquejar de trovão, a cada ranger de peroba, havia refugos e passarinhões dificultosos de conter. A própria madrinha, badalando o cincerro adiante dos outros animais, erada e pachorrenta, granava os imensos olhos, endurecia o lombo e batia os dentes, fremia num triste assombro.

Assim que se viu no começo das pedras, onde se fazia mais ladeirenta e mais íngreme a subida, o Vadico parou, apeou-se, e principiou a olhar o caminho já vencido, que mergulhava misteriosamente no fundo da mataria e da cerração. De banda a banda, agora, havia precipícios. As árvores, emergindo deles,não se enxergavam por inteiro, toucadas, como estavam, de uma brancura opaca: somente, uma vez ou outra, a paisagem ficava dourada, em seguida cor de fogo, para logo depois se tornar mais escura que dantes. Era um raio a mais, muito perto…

O Zé de Mello, entretanto, resmungou, quase irado:

- Antão a gente fica à toa, agora, estudando nomeio deste inferno, nho Vadico? É melhor atorar duma vereda, que o tempo, afinal, levanta. Eu, por mim, botava o posto na estrada, e já.

- Pois antão-se atice a madrinha, seo Zé, e faça chão! Diz que chuva não quebra osso: e não quebra mesmo. Um, dois, três!

As ferraduras fizeram chispas nas pedras batidas, e houve um rápido estrugir de tropel desordenado. No primeiro arranque, a madrinha, porventura possuída de zanga, agitou forte a campainha, e aquele som metálico, espalhando-se pelos arredores, e descendo vagarosamente a umas poucas braças dos paredões de lado a lado, parecia uma voz fina de choro e desânimo.

O alto do morro apareceu de repente, no meio de jacarandás e cabiúnas, e o rancho coberto de guaricanga. Ia o Vadico repontar a tropa, torcia já no rumo de um estrelo meio entregue, quando o céu todo se acendeu numa viva chama trêmula, e uma trovoada abalou as serras, chegou rija ainda aos costados do morro, foi vibrando por árvores e córregos.

A tropa, com o flamejar do raio e o urro do trovão, espavorida, abriu. O galope desabalado que levava cada animal para o desconhecido, entre o rumor e a alucinação da claridade súbita, dir-se-ia ainda o violento bradar da trovoada. E o Zé de Mello, numa angústia, chamou pelo Vadico:

- Patrão, acuda, que a tropa 'tá estrangulada e lá aí vai p'r o taimbé abaixo!

Era tarde. Uma por uma, todas as cabeças se precipitaram. Em baixo, no mistério do abismo, alguma coisa longínqua murmurou por momentos: águas talvez, que desciam dos valos; enxurradas clamorosas que buscavam a largueza do rio; cair tumultuoso de jequitibá, que se desarraigava ao vendaval e gemia baqueando no salmourão molhado…

Um relâmpago alumiou então a meia-treva do taimbé: e àquela estranha luz, sentindo um grande frio no coração e muito escuro na alma, o tropeiro exclamou:

- Sume e espatifa, mulada de flor, que atrás de vocês vou eu! Quando a gente fica olhando p'r'a luz, ansim, não perde nem não ganha mais nada com viver. A terra tuda 'tá molhada: quem tiver de cavocar os sete palmos p'ra mim, não há de ter muito trabalho!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 27/3/1905 (Acervo Estadão)

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