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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Grande amor!

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na edição de 18 de janeiro de 1903 do jornal O Estado de São Paulo, nas páginas 1 e 2 (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição, algumas palavras ilegíveis no original):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal de 18/1/1903 (Acervo Estadão)

 

Grande amor!

O Camilo fora sempre um desiludido, um acabado cético, desde que presenciara umas tantas desgraças alheias e não pudera deparar-lhes o mínimo remédio: por não ter ânimo de sofrê-las, talvez em mais alto grau, covarde ante a possibilidade da dor, fugira, apenas feito adolescente, ao perigo das paixões tumultuárias, e contentava-se com os rápidos e tediosos momentos da carícia alugada nas casas oficiais de prazer.

Valia-lhe isto agravar o desamor que votava às mulheres, que chegou a olhar com certo asco íntimo, com sentimentos de revolta bravia, sofreados a custo. Mais um pouco, e descairia no marasmo dos contemplativos, dos estáticos de si mesmos, que egoisticamente se guardam para as delícias confusas da soledade.

Negaceou-o, porém, a fortuna, e por tal maneira, que lhe pôs diante um dia aquela que havia de fazê-lo abdicar dos antigos pensamentos. A desenfastiar-se, um dia que rompera de uma casa acortinada de rendas e mobiliada de cadeiras custosas e assombreada de reposteiros cor de bronze, aonde encontrara um camarim de perfeita artista da vida livre, todo graças, todo mimos, barafustou pela entrada de um circo, quase levado pelos outros, na onda de povo, depois que lhe deram, pela janela da bilheteria, o quadrado de cartão em que se via, triunfante, no dorso de um cavalo, o vulto quase divino de uma equilibrista qualquer.

Sentou-se a uma das cadeiras, afastado dos demais, absorvido no seu enojo. Quando o palhaço espipou dentre as chitas do guarda-roupa, guisalhante e encarapuçado à moda do diabo, a alegria dos outros doeu-lhe a ele, fez-lhe imensamente mal. Não se pudera afazer nunca à ideia de que a turba se risse por tal forma com humilhação de alguém; e humilhado até ao servilismo se lhe afigurava aquele pobre filho de Deus (filho de Deus!), pintado e repintado, com o poder da vista alargado fantástica e ridiculamente pelas olheiras de carmim e alvaiade, e o rosto ponteado de verrugas falsas. Ia já maldizendo o momento em que lhe surdira no espírito embaçado semelhante lembrança.

Mas apareceu, para ele quase a súbitas, a Marieta, a muito gloriosa estrela da companhia, de roupa justa ao corpo, roupa cor de carne, que, sobre as formas cheias e redondas da moça, eram o começo da meia realidade da exibição completa. A Marieta passou e repassou os minúsculos pés na tabuinha de breu de junto à entrada da arena, atirou, simultaneamente com as duas mãos, beijos ao público, e de um salto subiu ao alazão, que partiu em desfilada louca. E principiaram as sortes, as passagens dificultosas, as martirizações da acrobacia assustadora.

Vendo aquele corpo adorável enovelar-se e desenrolar-se no ar, caindo de pé na sela quadrada, e agitar-se depois na corrida através dos travancos, e escoar-se pelo meio de um arco de papel, rasgando-lho e tomando-lhe as ocultas bandeiras, o Camilo foi se sentindo pouco a pouco viver, animar-se, possuir-se de entusiasmo e de susto.

Houve um descanso: o palhaço disse meia dúzia de futilidades, que fez estrondear as gargalhadas pelo circo inteiro, e a Marieta, sobre o cavalo a passo, veio deter-se em frente ao Camilo, onde teve de escutar uma declaração cômica de amor. E ele, não sabendo como explicar a si mesmo o pensar dementado, sentiu desejos de vencer a distância e esbofetear o arlequim.

A Marieta relanceou-lhe sonso um olhar. Ele reparou-lhe nos olhos, quando ela os tinha voltados para o alto, para o pano que se enfunava e rugia ao vento forte da noite; notou que se arrasavam de água e não chegavam a chorar, adivinhou no fundo da alma da moça algo de muito […] –da até então. Dispois […] o alazão […]  crinas a arfarem como que alucinadamente, e a Marieta se lançou por três arcos seguidos, dando um salto mortal e caindo em pé na sela, e o circo todo ressoou com frenéticos aplausos, um grande arreglo fez que ele se levantasse: e, quando ela lhe perpassou de novo pela frente, agitou como um possesso um lenço de seda, pequeno, donde voou logo o perfume estonteante da violeta. Ela mirou-o, na vertigem do galope.

Agora, a cada vez que ela se aproximava, parecia ao Camilo sentir dentro em si, mais rápido que o do cavalo, o catrapoz desapoderado do coração: e por último, no ato de ela descer, de um salto, ao meio da arena, donde se despediu do público a beijos pelas pontas dos dedos em forma de pinha, o Camilo não pôde conter-se, abriu no ar o lenço aromado, batendo-o, sacudindo-o, e ela então contemplou-o por um momento, com um retalho de riso sobre a melancolia do semblante, e desapareceu.

O Camilo achou-se presa, outra vez, de tédio. Saiu do circo.

Vinha descendo pelo céu fora, em vagaroso serpejar, uma estrela cadente. A ventaneira uivava, as árvores da praça iam-se tornando soluçantes.

Foi então, daí por diante, o amarem-se de modo insano. Ela vinha não sabia donde, tomada, em pequena, a pais que decerto se desvencilharam da filha como de um peso por demais perigoso a quem começa de sentir o seu navio da vida a ponto de fazer naufrágio. Experimentar, desde bem tenrinha de anos, a sujeição e abatimento impostos por essa desclassificação inicial.

Mal aprendera, ouvindo-as a uma velha um tanto aluada da companhia, as orações cristãs que de bom grado se ensinam aos que vão entender nos trabalhos do mundo, a fim de que, mais tarde, quando a tristeza ou o desânimo os empolgue, tenham nelas um refúgio contra as tentações finais. Tinha a alma educada tão somente na escola da humilhação e da dor, o coração temeroso e retraído à semelhança de uma sensitiva crescida à beira da estrada.

O Camilo quis-lhe porventura por isso mesmo, por ver que ela não era ninguém, ia nascer e novo ao bafejo de uma paixão fecundante e criadora. Via-a sempre, nas grandes e surpreendentes funções, como rezavam os programas espalhafatosos, e, muitas vezes, na desalentada moleza dos exercícios: quando, porém, lhe cabia a ela a vez de trabalhar no trapézio, em que primava, uma como vertigem o possuía todo, fazendo-lhe estranho rumor nas têmporas e causando-lhe indefinível mal- estar.

Fora-se pouco a pouco avezando à ideia de a furtar àqueles tormentos, que também estavam sendo seus. A resolução não lhe podia vir de pronto, precisava ser alimentada e nutrida com vagares de criança frágil. Escreveu-lhe uma carta, representando-lhe a intenção em que vivia: foi-lhe tornada a resposta, cheia de dúvidas e vacilações, com as incertezas de quem sofre as torturas do encarceramento e receia os perigos da fuga.

E travou-se uma contínua e ardente correspondência entre ambos. Ela não sabia traçar as frases cuidadas com que ele a festejava e acariciava, dizia-lhe apenas amores brandos e suaves. Ele, porém, que se desmandara na leitura romântica, desfechava contra a sua armada uma violenta artilharia sentimental, rica de interjeições e dificuldades gramaticais. Muitas vezes, relendo as cartas cujo rascunho conservava, o Camilo confessou entre si que aquela feição do seu amor não deixava de ter cambiantes de ridículo, e que a moça acharia mais árdua a leitura delas que o passar dos arcos eriçados de facas.

Mas perdoava-se a si mesmo, conceituando que à sua loucura de amor só lhe cumpriam quejandas loucuras, e não descontinuava. Aprazou-lhe evasão àqueles martírios do circo, marcou-lhe o lugar em que haviam de encontrar-se, terminou o rápido bilhete em que o fazia com um rasgo de lirismo tremendo:

"Vieste do desconhecido. Vamos juntos para o desconhecido…"

Quando o Camilo apeou do carro, nas proximidades do circo, e traçou a capa de pelúcia, que o frio da neblina aumentava, ia pensando no como se fizera apaixonado quem, pouco havia, tinha pelas mulheres um entranhado sentimento de repulsa. Reconhecia-se deveras escravizado à beleza sofredora da Marieta, capaz de salvá-la e remi-la para as satisfações da vida, com uma vibrante coragem de arrancá-la ao cativeiro em que a trazia aquela choldra de saltimbancos de toda a espécie.

Um luar indeciso esclarecia as calçadas úmidas, e o Camilo, rompendo o nevoeiro, entrava a tiritar quando uma tumultuosa vozeria e uma demorada salva de palmas o fez apressar e quase correr: e achou-se no circo de pronto, admirando pasmadamente a amada, que, como dona do espetáculo da noite, se apresentara sécia e rútila de pedras preciosas, entre os mais artistas, com risos para todos os lados e o mesmo ar de melancolia inconfessada na inexpressão do olhar.

Procurou a cadeira do costume, sentou-se. Mas a Marieta não o viu ainda, porque já retirava em seguida a uma nova tempestade de aplausos, oprimida de chamados em todas as vozes, solenemente pausada e amável, como deve caber a quem vai trabalhar em seu próprio benefício. E voltou daí a instantes, passou e repassou os pés na tabuinha de breu, foi à corda de um trapézio que demorava na parte mais alta do circo, subiram-na puxando por aquela corda: ajeitou-se no trapézio, casou as curvas dos braços ao linho, dirigiu beijos leves a todo o povo. E ia principiar os horrores da ginástica.

Mas viu, de súbito, o Camilo. Não teve tempo de olhá-lo bem. Falseou-lhe um dos pés na travessa do trapézio. Fez um repentino movimento para atingir um dos cabos. A mão convulsa que o procurava apenas roçou por ele e muito docemente. O corpo ainda teve no espaço um […] de serpente irisada, uma […], um rápido fremir: e baqueou em cheio na arena, des[…], partiu-[…] a multidão aterrorizou-se […] de fora, agitou-se […] desesperadamente; e entrou de roldão pela arena, desesperadamente urrando.

Saiu o Camilo, atropelado na onda do povo, atormentado, alucinado. Chegou ao carro, pôs o pé esquerdo no estribo, deteve-se, pôs o pé direito, retirou-o; pôs uma das mãos no encosto da boleia, afastou-a. E como o cocheiro lhe perguntasse, entre confiado e respeitoso, se a moça que tinha de seguir não estava por perto, o Camilo sacou da carteira, pagou-lhe o preço convencionado, despediu-o.

Foi caminhando entre a neblina, que se cerrara mais e mais. Um bêbado, ao perpassar por ele, exclamou com voz arrastada, mas estridente:

- Qual! Hoje eu estou mesmo de sorte!

Apesar do imenso desalento em que se via, e do tédio da vida, que outra vez o visitava, soou-lhe mal aquele galicismo, ofendendo-o e irando-o. A tristeza, porém, venceu: e ele recostou-se a uma esquina, conchegou as bordas da capa ao pescoço, desceu o chapéu até aos olhos, sepultou as mãos nos bolsos, recomeçou a caminhada. E foi repetindo maquinalmente, com os lábios meio cerrados, numa prostrada introversão de desespero:

- Eu estou mesmo de sorte!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 2 do jornal de 18/1/1903 (Acervo Estadão)

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