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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (12): Natal no Lourenção

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na edição número 9/ano 1 da revista paulistana A Novella Semanal, de 25 de junho de 1921, páginas 144 a 146 (Acervo Brasiliana/Universidade de São Paulo - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 137 da revista de 25/6/1921 (Acervo Brasiliana/USP)

Imagem: reprodução parcial da página 144 da revista de 25/6/1921 (Acervo Brasiliana/USP)

 

Natal no Lourenção

Foi debaixo de uma chuvinha persistente e mangueira que o Neca Alves voltou do capoeirão, ao fechar da tarde, carregado de palmas de guaricanga e de folhas de samambaia das miúdas. Um ameaço de sol doirava o fundo do poente, que logo, entretanto, se acinzentou de novo, até que a barra da noite, menos escura, talvez, que as nuvens do alto do céu, se foi alastrando pela costaria verde-negra das montanhas. Urrou, pelas sofraldas, e voz melancólica e pausada das vacas errantes: e de longe lhe respondeu, vingando o morro todo trêmulo das touceiras de jaguara, o bramido áspero de um touro costa d'África.

O Neca era um mestre dos natais daqueles centros. Em três léguas em volta ninguém sabia pôr a mão num presépio nem puxar uma reza como ele. Catava quanta barba-de-velho pendia das árvores heradas, pelos campos-cobertos; quanta folhagem esquisita nascia à beira dos córregos: e até - coisa que fazia piedade! - os ninhos que podia topar, dos sabiás, joão-de-barro e dos tico-ticos indiscretos. Fazia o jrau a um canto do alpendre, armava um empalizado junto d'este, compunha e concertava os musgos e as flores a todo o arranjar, lançava ao fundo a manjedoura, e tinha um jeito todo seu de colocar os cássicos animais que viram, logo ao nascer, a linda criancinha de Belém, que foi Nosso Senhor Jesus cristo.

Assim, pendentes sobre a palha seca e aos lados da cumeeira, com os rostos muito risonhos voltados para o berço rústico, os anjos pareciam mandar ao galo que cantasse, ao boi que mugisse e ao carneiro que balasse brandamente, por não estorvarem o sono plácido do filho de Maria Nazarena. E via-se bem que o carneiro e o boi e o galo não tinham vozes agudas, porque mais se ocupavam em olhar para o doce vulto infantil que tinham diante, cercado de flores agrestes, de mangas, de cajubis, de pingos-d'água e de marmelinhos.

Era um verdadeiro mutirão, o preparo do presépio: cada qual dos convidados trazia uma novidade ou uma surpresa, como rosas raras naqueles ermos, jabuticabas atrasadas, galhos vermelhos de café-murta em pencas. A Risoleta, o pancadão do bairro, alva e engraçada como um lírio de ribeirão, trouxera agora um braçado de tábuas e ramalhetes de bariricó ladeados de maravilhas. O Neca, vendo-a entrar assim, admirou-se:

- Tábua, aqui, siá dona? Eu cuidei que isto só dava na minha terra, p'r'as esteiras que a gente vende nas festas e neste rincão só tinha o piri, que p'ra mim é uma planta cansada!

Ela corou ligeiramente; não tanto como as maravilhas que trazia nas mãos, mas decerto muito mais que o namorado, quando lhe disse tais coisas: que o Neca Alves, um tostado de Serra Acima, era quebra e decidido para pensar e dizer... Começou a ajudá-lo, então: e Nosso Senhor, se pudesse ver, acordando de repente e com olhos que entendem, toda flor e toda fruta que lhe foi posta ao lado, teria de estranhar que na terra de sua natureza pudesse haver uvaias e araçás, oficiais-da-sala e sumbaré.

Num certo momento, encontraram-se as mãos de ambos. Era natural, na continuação do trabalho: e, contudo, a dela tremeu de leve, a maneira de uma juruti que a aragem toca, e ele pediu-lhe desculpas, serenamente, como quem sabe que vai ser logo desculpado. Nada mais que isto: e, apesar de ser tão pouco, a Risoleta já não foi mais, de então por diante, o alvo lírio do ribeirão, porque inteirinha se fez rosada como a flor do pessegueiro. Foram chegando os vizinhos: a manjedoura mais ficou sendo um jardim e um mercado de frutas, que manjedoura, onde havia cordas e trapézios em que brincavam crianças, umas viradas para o menino Jesus, outras sungando a outras.

O dono da casa apareceu afinal, rengo e pesado, arrastando pelo chão socado a sua erisipela doida e barulhenta. Quem o viu, triste e entregue no meio de toda a alegria espalhada no alpendre, ficou logo também triste. Mas houve quem procurasse combater a impressão de mágoa que se ia entranhando no povo:

- Ué, seu Caetano, você 'tá que nem moça da roça, c'uma perna fina e outra grossa?

Ele voltou-se para o caipira alegre, e seus olhos tiveram um grande olhar de comovida renúncia. O caçoísta ficou sério, aproximou-se, pôs-se a examinar o pé inchado do doente, e concluiu, solene como numa conferência:

- E não é que o home 'stá mesmo c'a erzipa das brabas? Mas porém isso não vale nada: atuche-lhe uma banharada de arve-de-lagarto, uns panos molhados em cozimento de erva-lanceta que numa volta de mão 'tá pronto p'ra outra. Exp'rimente só!

Fazia-se estridente a gritaria dos grilos e dos gafanhotos, fora. Viam-se brilhar no céu, muito nítidas como pregadas num veludo já gasto, as maiores estrelas: que as outras, fraquinhas ou desconsoladas, não se animavam a aparecer na profundeza daquela noite de festa. Levantou-se o tempo, mas a horas que os galos principiavam a bater as asas e a cantar, espaçadamente ainda. E como o Neca se pusesse em frente ao presépio, e ajoelhasse, todos ajoelharam também, numa grande agitação de bancos e prucas arrastados, num forte rugir de saias e de calças cheias de goma.

Começou a reza. O Neca era afiado para aquilo, sabiam-no todos: mas, fosse lá como fosse, não tinha a voz tão segura como sempre, distraía-se às vezes, estava um capelão de meia pataca. Engrolou a maior parte da ladainha, resmungou outra parte, liquidou a obrigação tão depressa como pôde, e sentiu no peito um doce alívio, quando, chegando aos últimos versos da cantoria necessária, ouviu no terreiro o estrondar dos tiros de garrucha e de rouqueira. Ergueu-se, avizinhou-se das Três Pessoas, fez uma reverência ao Menino Deus, beijou-o: e saiu.

Já trilavam as violas, roncavam os violões, e uma animosa sanfona fazia ouvir, da cozinha, o seu repertório fanhoso e curto, quando os convidados se chegaram ao presépio e foram deixando esmolas e retirando frutas e flores: que elas são sempre capazes de fazer feliz a quem quer que seja, nas virações da vida... Como fosse aumentando o movimento nas cercanias do presépio, e crescesse também o rumor, surgiu da noite um macho crioulo, pinhão, muito inhato e rabicó, de piques nas orelhas, e pegou a trocá-las ao pé da porta, contemplando extasiadamente o povo, cheio de bichos e de anjos nos negros olhos pasmos.

Pouco durou, porém, aquela contemplação: os guapécas que andavam cercando a mesa, onde já se viam lourejar os quartos de leitão e os franguinhos assados, saltaram ao pobre do burro, sinão quando, e ele de novo entrou na noite, a trote seco, zonzo e meio cadeira. Muito tempo ainda se ouviu, de mistura com os primeiros cantados, o ladrar bravio dos cachorros e a tropeada fugitiva: e tudo se afastou, afinal, até se confundir com a barulheira do córrego do Lourenção, que as chuvas recentes tinham engrossado.

Quem tirou o primeiro coreto foi o Caetano, embora estivesse increnco e pesadão desde já muitos dias atrás:

Aos amigos

um brinde é feito:

reina a alegria

em nosso peito.

E a rapaziada cantava deliciadamente o conhecido estribilho:

Grato licor,

Alegre e jocundo,

Que todo este mundo

Desafia a amor.

Uma velha, rodeada de crianças, contava a história do nascimento de Cristo:

- O galo, antão, cantou por este jeito: "Jesus Cristo nasceu!" E a vaca preguntou-lhe: - Adonde? E o carneiro arrespondeu: "Em Belém".

Mas a festa não ia boa: faltava-lhe o Neca Alves, que era todo enlevos e mimos com a Risoleta. Já lhe chamavam puxa-puxa, coisa com que ele dava um cavacão sem altura; já diziam que tijolo e azeite daquele feitio, era desaforo de mais: e houve um senhor muito saído, que, às escondidas dele e dela, os prendera um ao outro a poder de alfinete de fralda.

E a conversa dos dois era esta, por fim:

- Quando eu lhe vi, nhá Risoleta, est'ro dia, na casa do Carmo, de vestido cor de rosa e cravo branco no cabelo, e tive que vir-me embora, já voltei mais seu do que meu: fiquei logo latejando si havia de lhe pedir por minha boca ou mandar soletrar uma carta, si a carta devêra de ser p'ra você ou p'r'o seu pai.

- Tanto faz, seu Neca: a gente querendo, já vê que ninguém pode contra. Eu queria, não é? Já tava meio caminho andado...

- E adonde foi que você me disse que queria, ou ao menos, me deu a entender essa vontade?

- Quem quer bem adivinha pensamento; era da sua intenção que eu saísse anunciando que lhe tinha amor, ver esses piás que carrega tabuleta de circo de cavalinhos?

Apontava a manhã fresca e rubra. O sol mostrou-se com pouco. Houve tremuras de orvalho na grama-seda do piquete, porque ventava rijo. E o macho pinhão, ao longe, encostado à cerca de canjiquinha, dirigia para a casa de morada um olhar muito repassado de tristeza e saudade. Toda prata da grama foi sumindo, envergonhada, porque todo o ouro do sol deu de roda e pelo chão.

- ...E que casamento bonito, não é nhá Risoleta? Bonito e singelo... feito o Menino Jesus...

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução parcial da página 146 da revista de 25/6/1921 (Acervo Brasiliana/USP)

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Imagem: reprodução da capa da revista de 25/6/1921 (Acervo Brasiliana/USP)

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