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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (4)

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Em um sábado, 7 de julho de 1906, o jornal paulistano O Estado de São Paulo publicou, em sua primeira página, este texto de Valdomiro Silveira (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Resignado

Ansim que dobrei o morro e caí naquela meia chapada (o sol já 'tava esmorecendo, a sombra vinha escorregando p'ro morro abaixo), topei c'uma coisa à toa, uma coisa de nada, mas porém que me fez o coiração dar um balanço forte.

Ora o que não havéra de ser? Um passarinho, o pobre dum tico-rei, que parava em riba duma folha-larga e cantava suzinho a sua cantoria meia chiada e muito triste. Reparei em roda de mim umas duzentas braças, não vi ninguém, ninguém: acho eu que, afóra eu e aquela avinha, faz muito tempo que não hai quem tenha corage de se aventurar p'ra aqueles ermos.

Sentei numa pedra escura, que tinha um limo esverdeado e feio, e peguei a maginar neste mundo de barafunda que tem sido a minha vida, de certos meses p'ra cá: alegria não me chegou nem uma, tristeza não me tem faltado, trabalho tenho tido em demasia… e arriba de tudo, p'ra me deixar nas toeiras duma vez, a lembrança daquela tirana é que não me larga um instante.

O tico-rei a mó que troceu a língua, ou não sei o que: ficou mudo de repente virou a cabeça p'ra baixo, quaji que rodou da folha, e arripiou a crista cor de sangue vivo, como quem garrou a pensar amargurado e não tem ânimo de tirar mais o sentido daquele pensamento de tanta malinconia.

"Uiai! Tico-rei (foi o que me veiu na mente, aí nessa hora), pois você também 'tá vendido desse feitio? Você também tem seu rabicho? Você também 'tá só e desamparado? Não seje bobo: si uma não quis ouvir a sua [… (N. E.: linha ilegível no original] sobejar algum p'ra você, como p'ra tudo o resto dos que vivé! Espalhados p'resses centros de chão! Arvore o voo, enquanto a noite não fecha, campeie o seu fado, que o seu fado com certeza não é ficar aqui pinchado nessa folha, suzinho e Deus, ver eu que só tenho por mim a minhá sombra, e isso mesmo mal e mal!"

Passou uma arage, não houve ramo que não bulisse. A folha-larga tremeu de alto a baixo, e a coitada da avinha sumiu entre meio dos galhos, quando os galhos se ajuntaram; despois levantou a cabeça, empapuçou o pescoço e cantou outra vez uma temporada; a arage foi-se embora, a noite veiu chegando; e umas par' de estrelas já 'tava mexe-mexendo no fundo craro do céu.

Estudei aquela avinha, enquanto o dia foi dia; vi bem que não saiu da folha ond' teve cantando; achei que a parage era soturna de mais, não tinha uma risada de fonte que se esborrifa, nem a boniteza de uma flor que cheira no entrançado da cipoama; tirei de mim p'ra mim que o passarinho inda era mais desinfeliz do que eu.

Quem eu queria não me quis mais, isso é verdade, andou-me armando a ingratidão mais negra que eu tenho visto; não piso num palmo de terra meu, isso é verdade; não encontro na minha estrada uma cara que sirra p'ra mim com amizade verdadeira, isso é verdade: mas porém quando eu quero, enrólo os meus tilangues, vou fazer o meu empreito lá da outra banda do rio, lá da outra banda do morro, afundo no mato velho, derreto no sertão, fico morto p'ra quem fica e vivo só pr'a mim mesmo.

Agóra a noite já tapou de tudo, a única luzinha que me alumeia é a craridade das estrelas e um pouco do branco do crescente; não me chegou alegria nem uma, não me falta tristeza, 'tou como dante' ou quaji: mas ao menos vou rompendo, vou seguindo, levo o meu coiração amargurado p'ra lavar noutros ares, e póde bem que os outros ares um dia me lave' dereito o meu coiração…

E o pobre do tico-rei? Ficou trancado porque quis e foi seu gosto, naquela folha, naquela arve sem graça, naquela chapada temerosa. Tem muita dor e não abre; desesperou e não foge; 'tá morre-não-morre e não percura a vida. Si é certo que eu carrego comigo a minha malinconia, ela vai arejando e mudando de figura, p'ro sol e p'ra chuva, p'ro vento e p'ras tempestades; talvez inda vire nalguma coisa bem deferente, de menos tristura e de mais consolo, alguma coisa ansim como uma sodade bem antiga, de bem longe, de muito bem.

Eu antão hei de sentir alivio de coiração, sossego de alma, felicidade… Felicidade, póde ser que não, mas contanto que o sossego e o alívio eu hei de ter, tão certo como sem dúvida: e um filho de Deus, que já viu o inferno de perto, como eu ando vendo, inda é tão ambicioneiro que queira mais? O mais é átoa, não vale muito p'ra quem já não espera nada e sabe que esperar por alguma coisa é ter o desengano como fim de tudo…

Valdomiro Silveira.

Das Leréias, livro do dialeto.

Imagens: reprodução parcial da página com o texto

N. E.: este texto também foi publicado, com o acréscimo do vocabulário, nas páginas 54 e 55 da edição correspondente ao primeiro semestre de 2004 da publicação Acervo Histórico, editada na capital paulista pela Divisão de Acervo Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

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