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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETA DO MAR
Vicente de Carvalho (13-B)

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Vicente de Carvalho foi assíduo colaborador da revista paulistana A Cigarra, que na maioria de suas edições - desde a primeira, em março de 1914 - apresentava seus versos, muitas vezes até então inéditos. Estas são as publicações (revistas preservadas no Arquivo do Estado de São Paulo - acesso em 24 e 25/10/2011 - ortografia atualizada nestas transcrições):
 

A Cigarra - Ano 1/nº 19 - 25 de março de 1915 - página 48


Imagem: reprodução da página com o texto original

Nota da Redação – Damos hoje completa, uma poesia do grande poeta brasileiro Vicente de Carvalho, da qual A Cigarra, num dos seus últimos números, publicou as três primeiras estrofes. As três estrofes publicadas tinham sido furtadas a um manuscrito incompleto do poeta, e demo-las à luz sem ele o saber. A poesia completa (inédita), que hoje oferecemos aos leitores não foi furtada. Isso prova que o poeta nos perdoou o furto, e é razão para que os leitores d'A Cigarra no-lo agradeçam.

Versos – que ficaram por fazer

Quanto durou essa ilusão perdida,
Esse amor, esse encanto, essa alvorada?
Dias ou meses – não o sei, querida:
Foi um clarão que me passou na vida,
Sei que fulgiu, sei que passou, mais nada.

Durante o arroubo da paixão, que há de
Notar o tempo que a fugir se esgueira?
No amor – ventura ou infelicidade –
Uma esperança doura a vida inteira,
Um desengano é toda a eternidade.

No absorto enlevo desse amor tão raro,
No êxtase dessas adoração radiosa,
Passava o tempo? Nunca pus reparo…
A madrugada era um botão de rosa
Desabrochando em teu sorriso claro.

Havia noites? Ainda agora penso
No olhar de uns olhos negros – céu imenso
De estio em noite sonhadora e calma
- Céu luminoso, a palpitar, suspenso
Sobre essa terra em flor que era a minh'alma

Fosse inverno ou verão, ou noite ou dia,
A natureza inteira, humilde escrava
Dos arroubos da minha fantasia,
Em cada voz o teu louvor cantava,
Do teu fulgor toda resplandecia.

Sim, esse sonho esplêndido – vivi-o.
Quando? E quanto durou? Bem pouco importa.
A minha vida, agora, é como um rio
Que leva à tona, sob o céu sombrio,
A murcha flor de uma esperança morta.

"Ah, quem assim me fala ama-me ainda!"...
Dirás contigo. .. Em alta voz o nego:
Que resta em nós da primavera finda?
Tu, sempre encantadora e sempre linda,
És a mesma, talvez… mas eu estou cego.

Amei-te, e já não te amo… Não, decerto.
Tu foste uma miragem deslumbrante
Que em meu sonho feliz sonhei tão perto
- E desfez-se, deixando-me diante
Da tristeza vazia do deserto.

O amor de que te amei tão loucamente
Era como um olhar que o céu alcança:
Para ti, alto céu resplandecente,
Todo se erguia, no êxtase de um crente,
Feito de adoração – e de esperança.

Hoje, desiludido, na verdade,
Para sempre, do sonho de um momento,
Hoje, na sombra, penso com saudade
Que o teu encanto era uma claridade
E o meu amor foi um deslumbramento…

Vicente de Carvalho.

A Cigarra - Ano 2/nº 20 - 21 de abril de 1915 -  página 26:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Trovas - especiais para A Cigarra

Ouve: se amor é pecado,
Eu, pecador, me confesso
De tudo quanto anda impresso
No meu olhar enlevado.

Se com isso estou perdendo
A minh'alma transviada
- Minh'alma não vale nada –
Eu peco, e não me arrependo.

Deste ardor em que me inflamo
Direi, para ser sincero:
Que dele apenas espero
Amar-te mais do que te amo.

Se rezo, nas minhas preces
Só peço a Deus esta graça:
Que me conceda e me faça
Amar-te quanto mereces.

Eu vivo tão descuidado
De tudo mais desta vida,
Que nem me ocorre, querida,
A ideia de ser amado.

Amor com o feitio desse
Que a si mesmo renuncia,
Como te agradeceria
O que eu por ti padecesse!

Deixa tu, pois, que se farte
Meu olhar impenitente
Todo embebido e contente
Da só ventura de olhar-te.

Sem razão foras severa
Com a pobre de uma roseira
Porque ela, queira ou não queira,
Dá rosas se é primavera…

Deus que nos pôs face a face
E deu-me os olhos que tenho,
Nisso mostrou certo empenho
Em que eu te visse – e te amasse.

Por força de lei divina
E não, de certo, por gosto,
Quando pousa no teu rosto
O meu olhar se ilumina.

Perdoa, pois, a insistência
Dos olhos que a ti levanto:
Olhar-te é o supremo encanto
De toda a minha existência.

Olhar-te… Delícia calma!
Mar tranquilo e sem escolhos!
É o pecado dos meus olhos
E a salvação da minh'alma.

Confesso-me, nada nego:
Amo-te… E nisto de amar-te
Só tenho, de minha parte,
A culpa de não ser cego.

É o meu destino, que queres?
Eu te amo porque me encantas,
Tu, a mais linda das santas,
E mais santa das mulheres.

Vicente de Carvalho.

A Cigarra - Ano 2/nº 21 - 11 de maio de 1915 -  página 11:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

No mar largo

Ó lua bendita
Que vens clarear
A sombra infinita
Da noite no mar!

Como princesa encantada
Que um leve sonho conduz,
Surges do mar, coroada
De um nimbo de ouro e de luz:

Surges; e à tua presença
O céu, criado por ela
De dentro da noite imensa
Surge, e se azula, e se estrela…

Ó lua bendita
Que vens clarear
A sombra infinita
Da noite no mar!

Surgida do mar infindo,
O infindo céu te seduz
- Campo em flor que vês fulgindo
Em flores de ouro e de luz;

Teu passo, lento, caminha…
Onde vais? É longe? É perto?
Sobes, absorta e sozinha
Pelo céu vasto e deserto…

Ó lua bendita
Que vens clarear
A sombra infinita
Da noite no mar!

Lua, lua, não te apresses:
Mais sobes, mais se reduz
No alvor em que empalideces
Teu nimbo de ouro e de luz…

Onde o teu sonho te arrasta?
A que destino? A que termo?
Segues… A noite é tão vasta
Pelo azul do céu tão ermo…

Ó lua bendita
Que vens clarear
A sombra infinita
Da noite no mar!

Tão alto que tu subiste!
Tão longe!... Do céu a flux
Vagueias, pálida e triste,
Entre as flores de ouro e luz…

Como entristece, da tua
Ausência – ou das tuas mágoas,
O mar que deixaste, ó lua,
Lua surgida das águas!

Ó lua bendita
Que vens clarear
A sombra infinita
Da noite no mar…

Como uma lágrima prestes
A rolar, fulges, suspensa
Lá dos páramos celestes,
Lá do azul da noite imensa:

De todo o céu luminoso
Sobre todo o escuro mar
Desce o alvor silencioso
Do luar:

E o mar, sob a triste alvura
Desse lívido sudário,
Ermo e vago – se afigura
Maior e mais solitário…
Ó linda princesa,
Que vens aumentar
A imensa tristeza
Da noite no mar!

Vicente de Carvalho.


"CONFERÊNCIAS POPULARES - O nosso ilustre colaborador Vicente de Carvalho, que acaba de realizar uma brilhante conferência sobre Sentimento Nacionalista, na Universidade de S. Paulo, tendo ao lado o dr. Eduardo Guimarães, reitor daquele estabelecimento, barão Homem de Mello, dr. Adolpho Mello, dr. Armando Prado e outras pessoas gradas"

Foto e legenda publicadas na página 19 de A Cigarra de 11 de maio de 1915 (Ano 2/nº 21)

A Cigarra - Ano 2/nº 27 - 30 de setembro de 1915 -  página 38:

Vicente de Carvalho – Por nos ter chegado tarde às mãos, deixamos para o próximo número a linda poesia que Vicente de Carvalho estava concluindo especialmente para A Cigarra, e que havíamos prometido para hoje.

Rimas ao acaso é o título que o grande poeta brasileiro deu às esplêndidas estrofes que estão em nosso poder e cuja publicação teve a amabilidade de confiar à Cigarra.

Publicá-la-emos em duas páginas, com ilustração de Madeira de Freitas.

A Vicente de Carvalho, que tem honrado A Cigarra a sua frequente colaboração, somos muito gratos por tão cativante gentileza, a qual muito nos desvanece.

N. E.: não foi publicado nenhum conjunto de versos com esse título "Rimas ao acaso" nas edições seguintes de A Cigarra.

A Cigarra - Ano 2/nº 28 - 16 de outubro de 1915 -  páginas 19 a 21:

Imagem: reprodução parcial da página 19 com o texto original

 

POESIA INÉDITA DE VICENTE DE CARVALHO - (1915) - O autógrafo desta belíssima poesia inédita do grande poeta Vicente de Carvalho, cuja colaboração efetiva A Cigarra muito se orgulha de possuir, foi oferecido ao dr. Altino Arantes, a 29 de setembro último, data de seu aniversário natalício. Como se vê, o artista magistral dos Poemas e Canções – obra maravilhosa, destinada a ficar entre os monumentos imperecíveis da língua portuguesa – à medida que avança pela estrada da Vida, mais e mais se inspira e se revigora ao convívio da Musa.

 


Imagem: reprodução da página 20 com o texto original

De Manhã

I

Na minha torturada insônia de doente
Passei horas a ouvir a noite: longamente
Ouvi chorar, gemer, águas e vento Sul.

Raia agora a manhã no céu já todo azul.

Ao longe, a voz de um galo, insistente e exaltada,
Soa como um clarim no toque da alvorada.

Acudo ao teu chamado instante, amiga voz!
Acordo: esperto o olhar tonto de sono; e, após,
Do meu leito de enfermo, onde há tanto desvivo
Solto pela janela os olhos de cativo.

Ver é o supremo bem!
                                                          Surpreendo-me a cismar
Se a alma será – talvez - uma função do olhar…
É com os olhos que eu sinto, e compreendo – ou suponho.
A vida é para mim como a névoa de um sonho
- Névoa confusa de um sonho material
A que somente o olhar, de certo modo e mal,
Dá, com as formas e a cor, expressão e sentido.

Não desdenho do tato e não desprezo o ouvido:

Conheço bem aquela inefável pressão
Da mão amada quando encontra a nossa mão
E brandamente, e como achando um ninho, pousa…
(*)

Sei que um beijo de amante é uma bem doce coisa:
Mas no encanto do beijo esfaimado de amor
Há muito da visão rósea de um lábio em flor…

Ao contato de um lírio, ao contato de um verme,
É a sugestão do olhar que domina a epiderme.

Que uma sombra mortal, como pesado véu,
Amortalhasse o Sol – todo o infinito Céu,
Toda a face, enrugada e rígida, da Terra:

Que restaria em nós de quanto a vida encerra?

No que o ouvido escuta e o olhar que traduz:
Para a imaginação do homem órfão da luz
Que exprimiria o Som – canto, sussurro, grito,
Ribombo de trovão rolando no infinito
Ou palavras de amor em lábios de mulher?
Diluindo-se na paz da tarde rosicler
Canto saudoso ou prece humilde, murmurinho
Que se eleve de um templo ou que desça de um ninho?
Leve zumbir de abelha em torno de uma flor,
Ou rugidos do mar lívido de furor,
Que entendera a alma, cega e inútil, no mais doce
Dos murmúrios, na voz mais alta, que não fosse
Vago e impreciso som, inexpressivo, irreal,
Confundido num vão rumor universal?

II

Nunca tivesse o olhar humano convivido
Com a Natureza; nunca houvesse o homem subido
Pelos olhos, suave escada de Jacó,
Da Terra e de si mesmo, isto é, de lama e pó,
Para a resplandecência astral e inacessível
Do Céu – ermo sem fim, tão belo e tão terrível;
Ignorasse o abandono e a saudade do sol
Que inspira à noite a voz triste do rouxinol;
Desconhecesse a luz que desenha as paisagens,
Que entremeia no verde alegre das folhagens
O ouro vivo da seara e o sorriso da flor;
Que faz da primavera um sonho multicor;

Que, junto da montanha erguida eternamente
Para o longínquo Céu – como um gesto impotente
E imóvel de Titã – mostra, subindo no ar.
Do sossego de um vale o fumo azul de um lar;
Desconhecesse a luz, que revela a beleza.
A luz que espiritualiza a Natureza,
Que, num floco fugaz de espuma sem valor,
Cria a mais deslumbrante apoteose da cor;
Não aprendesse, amando a luz fecunda, o forte
Horror da sombra, horror do vácuo, horror da morte;

Encerrado em si mesmo e rojando no chão,
Insulado na funda, imensa solidão
Que em derredor do cego a cegueira dilata;
O homem, órfão da luz, na terra estreita e chata,
Quase só conhecendo o Universo – através
Do pedaço de solo em que pousasse os pés;
Dentro da escuridão de sua alma vazia
Que humilde sonho de molusco sonharia?

III

Ver é o supremo bem!
                                                          Eu insisto em cismar
Se a alma será, talvez, uma função do olhar…
Cegos, nunca saibais verdade tão doída
Para a cegueira: o olhar vale mais do que a vida!
É nas lições do olhar que aprendemos o Bem
E o Mal: o amor, o asco, a piedade, o desdém.
A dor que vemos dói como se em nós doesse.
Exprime uma verdade inconsolável esse
Provérbio tão brutal e tão justo no seu
Conceito imparcial de máxima egoísta,
Que condena o esquecido e absolve o que esqueceu
Dizendo-lhes com voz igual: "Longe da vista,
                                                          Longe do coração…"
Olhar, fonte perene e viva da Emoção!
Toda a fisionomia humana se ilumina
Ou tempestua pelo olhar – luz matutina,
Ou fulgor de corisco em céu de temporal:
Ardente, ou frio como a ponta de um punhal;
Dando, radioso ou turvo, expressão e eloquência,
À cólera, à ternura, à energia, à demência;
Abrindo a alma como a um clarão de luz solar
Ou vago como um por de sol a beira-mar:
Iluminando o rosto, ou enevoado em mágoa,
Boiando, inerte, à flux de uns olhos rasos d'água…

IV

A inspiração de um poeta é como solo inculto
                                                          Que à toa se abre em flor:
Todo esse turbilhão de ideias em tumulto
Que, nem eu sei porquê, rimei com tanto ardor.
                                                          Veio-me de ter visto
- Pela janela do meu quarto de doente –
                                                          Que maravilha? …
                                                                         - Isto:
Um trecho muito azul de céu alvorecente;
Um pedaço de muro engrinaldado de hera;
E, resumo feliz de toda a Primavera,
Ao leve sopro de uma aragem preguiçosa,
O balanço de um galho embalando uma rosa.

(*) Versos de Rosa, Rosa de amor…

Vicente de Carvalho.


Imagem: reprodução da página 21 com o texto original

A Cigarra - Ano 2/nº 30 - 10 de novembro de 1915 -  página 29:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

O orgulho da águia

A águia disse uma vez
Ao belo sol – e em sua voz zunia
Um sarcasmo profundo:

"A luz do dia
Porque a estragas, ó sol, deitando-a aos pés
Da mais humilde e mais obscura planta?

Porque mesclas à areia
Teu esplendor? Tantos fulgores, tanta
Riqueza espalhas, pródigo, à mão cheia,
Sobre mil coisas vis que os não merecem:
Sobre as asas do inseto
Mais pequenino e de mais feio aspecto
Os teus límpidos raios resplandecem:

Vais procurar na sombra
A flor mais tenra, o pássaro mais pobre:
E a esses plebeus da árvore e da alfombra
Dás um farrapo do teu manto nobre…

Sol, belo sol ardente,
Coisa tão rica como a luz da aurora
Devias escondê-la unicamente
À serra, ao mar, à águia que céus em fora
Rompe: a tudo e somente ao que é grandioso,
Ao que é belo, ao que é forte…"

E o sol, então,
Disse à águia:
"O meu raio esplendoroso
Beija, é verdade, os míseros do chão,
À areia se mistura,
E busca, e tem-lhe amor,
À perfumada e rosida frescura
De um cálice em flor,
A mesma luz que abrasa
As tuas penas, águia,
Deixo que à humilde, à pequenina asa
Do inseto doure, e fulgurante alague-a,

E sabes tu porque?
Sobe onde estou, verás: tudo confundo
Desta distância de onde vejo o mundo
Em que és tão grande… O meu olhar nem vê
Serras e mares mais que aves e flores;
E um só dos raios meus doura, ilumina,
Inunda de fulgores
A águia gigante e a Terra pequenina…"

Vicente de Carvalho.

A Cigarra - Ano 2/nº 31 - 24 de novembro de 1915 -  página 40:


Imagem: reprodução da página com o texto original

Versos a alguém

Não, não penses em mim! Pensa em ti, minha amada!
Foge desta paixão que te arrasta e me assombra!
Ave que vens pousar no pó da minha estrada,
Tua vida é um arrebol, meu destino é uma sombra.

Que céu azul reflete o teu olhar tão puro!
O sorriso floresce em rosas na tua boca…
E hás de sacrificar a este amor sem futuro
A primavera em flor dos teus quinze anos, louca!

E hás de ser infeliz porque te amo! E perdido
De amor, eu sofrerei a incomparável mágoa
De receber de ti, culpado e arrependido,
A bênção desse olhar nuns olhos rasos d'água!

Olha para o porvir – largo caminho aberto
Sobre um chão todo em flor, sob um céu pleno de astros;
Deixa o passado! Esquece os plainos do deserto,
Onde se irá perdendo a sombra dos meus rastros!

Não chores! Para ti abre-se a vida em flores…
Deixa-me só, caído à beira do caminho!
Sê feliz sem remorso! Esquece-me!... E não chores…
Menos padecerei, padecendo sozinho.

Adeus! Deixa-me! Vê: tenho os olhos serenos,
Fito quase contente o meu sonho em pedaços…
Morrer de ver-te a rir nos braços de outro – é menos,
Bem menos que te ver, chorando, nos meus braços!

Vicente de Carvalho.

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