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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETA DO MAR
Vicente de Carvalho (7)

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Publicado no jornal santista A Tribuna, em uma quarta-feira, 22 de abril de 1925 (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução da página original

Um ano depois...

Quem se der ao trabalho de auscultar a alma de nossa cidade, e puder subir ao coração do povo santista, há de, necessariamente, verificar que palpita, cheia de vida, em tudo e em todos, o grande poeta de "Rosa, rosa de amor", Vicente de Carvalho, cujo passamento se verificou, exatamente, há um ano, na madrugada de 22 de abril, a dois passos apenas do mar, do marulhoso mar do Boqueirão, que ele cantou com ternura de namorado e afagos de noivo extremado.

Parece mesmo que Vicente de Carvalho não morreu, que a sua presença é esperada, abruptamente, como do regresso costumeiro de suas excursões às grotas, fartas de peixe, que transformam o litoral, nas suas maravilhosas anfractuosidades e nas suas pitorescas reentrâncias, num grande, num magnífico e eterno estúdio de cores e de modelos animados, que as almas privilegiadas, e somente elas, sabem desnudar, para as vazar no verso ou na tela.

Da longa viagem do suavíssimo cantor do mar, há, com certeza, a segurança de um regresso rápido, que somente assim se explica a saudade esperançosa, que não tem o amargor da saudade irremediável e irremediada dos que morreram.

É curioso observar-se o que se passa relativamente ao grande poeta santista, decorrido o primeiro ano de seu desaparecimento: não o chora, nem o lamenta a alma popular, como o homem que se desagregou da coletividade, ou que se despediu do mundo, mas como o imperecível valor que, no seu afastamento, continua no conchego de todos os corações e na intimidade de todas as almas; que, apenas, numa prodigiosa imaterialização, escapa aos nossos olhos, aos nossos sentidos, mas que vive conosco, que nos segue e nos ampara, que nos dignifica cada vez mais com a sua glória refulgente e, cada vez mais, nos ilumina com a sua ofuscante espiritualidade.

Vê-lo-emos, de novo, amanhã, no bronze que o há e materializar, outra vez, no definitivo regresso aos olhos do povo, que o viu partir para a Morte, com o convencimento de que, de um ligeiro repouso, ele voltaria, como volta, insensível ao tempo, numa quase divinização, para esplender eternamente na glória, que outro pedestal não aceita que o do coração do povo.

Registrando o primeiro aniversário de seu passamento, A Tribuna saúda em Vicente de Carvalho a quinta-coluna augusta que, com os Andradas e Bartholomeu Lourenço, sustenta, através do tempo, o soberbo monumento do renome de Santos no concerto americano.



Imagem: reprodução parcial da página original

 

Vicente de Carvalho

"Amortalha-me tu! E eu possa desfazer-me!

No ar claro e sonoro!"

V. de Carvalho

Conheci Vicente de Carvalho pessoalmente. Tratávamos de interesses diversos numa falência. Era advogado adestrado e hábil e conversava muito sobre a vida forense, conhecendo como ninguém o desequilibrado mecanismo de nossa vida jurídica. Eu, apaixonado pelos versos de Vicente de Carvalho, tentava às vezes levar a conversa aos problemas artísticos e filosóficos. Baldado esforço. Vicente de Carvalho era advogado compenetrado de seus deveres profissionais:

- "Olha, aquele meu crédito..."

- "Perfeitamente, sr. dr. Vicente de Carvalho".

E se fosse eu juiz daria sempre ganho de causa aos poetas, como Vicente de Carvalho, que se fizeram advogados, harmonizando a sabedoria com a beleza!

Sentimentalismo! Mas que bom sentimentalismo esse que procura destruir a razão precária do utilitarismo, pela força de beleza moral!...

Porque Vicente de Carvalho não era o poeta descabelado e pálido da boemia romântica. Respeitável chefe de família, juiz austero e culto, advogado magnífico...

Por isso eu, ratão da imprensa e advogado moço, não compreendia como o poeta Vicente de Carvalho, meu amigo, amigo de meu pai, não falasse em poesia.

- "Leu o livro do Arinos, dr. Vicente..."

- "Li, mas... o meu creditozinho. Tenho que ir ao 3º ofício cível".

... .. .. .. .. .. .. .. ..

Platão, vindo da Sicília, antes de entrar em Atenas, tinha o espírito vacilante. Não sabia qual destino dar ao seu espírito integralizador: seria poeta ou seria filósofo?

Platão foi o grande filósofo racionalista. Ao raciocínio malicioso e desintegrador dos sofistas, ele opôs o idealismo fecundo e sadio, sustentado por uma dialética sagaz. Platão... filósofo, o divino Platão, o Poeta!

Sim. Platão arrastado pelos problemas filosóficos, era sempre o poeta Platão.

Vicente de Carvalho, empenhado na luta pelo direito, como juiz íntegro que foi, como advogado eloqüente que foi - era sempre o poeta que, se não dava sentenças em versos e se não arrazoava no mesmo estilo, era porque a sua poesia vinha da alma e escorria de sua pena como um mel delicioso. E assim morreu Vicente de Carvalho. Poeta. Altíssimo poeta.

- - -

Como era brasileiro Vicente de Carvalho! Tanto ou mais que Gonçalves Dias, com quem tem parentesco intelectual.

Nesta luta nossa de brasileiros contra a Natureza inculta, também nessa nossa lógica resistência à série de violências da Civilização - o espírito translúcido e cristalino de Vicente de Carvalho é o nosso espírito encantado e bisonho, sentimental e colorido, amorável e amoroso.

Na movimentação ciclópica do universo, na perpétua ânsia universal, o espírito brasileiro avança contra a Natureza, enfeitiçado por ela, deslumbrado por ela. Ama-a e quer dominá-la. É um macho apaixonado por uma fêmea forte. Idealismos. Sonhos vagos. Força. Rebeldia... Volúpia quente!

Vicente de Carvalho exprime tudo isso, liricamente, encantadoramente. A sua individualidade é volátil e elástica. É ágil como o corpo esbelto de uma dançarina. Move-se no ritmo dos versos como se movesse no ar claro e sonoro. Encolhe-se em si mesmo, na profundeza do seu mundo interior, pessoal, muito particular, exclusivo. E, depois salta, eleva-se, objetiva-se, indagando assim,

"Se a alma será, talvez, uma função do olhar".

E universaliza-se.

É panteísta sem ser hindu! É rebelde sem ser selvagem, é amante da vida livre sem ser rousseauniano.

Explica-se, pois, o seu amor como expressão consciente e sentimental da vida cósmica; o seu objetivismo dinâmico e fervilhante, a sua perplexa e contemplativa admiração pelo mar.

"Mar, belo mar selvagem

Das nossas praias solitárias".

Na literatura brasileira, Vicente de Carvalho influiu como devia influir. Caprichos e mistérios dos processos mentais e coletivos! Mas, fatalmente, a sua obra, embora diminuta, será de melhor modo compreendida. Aos poucos, ela se infiltrará, devagarinho ela penetrará dentro de nós, donde saiu. Porque hoje estamos sobre a pressão do movimento da crise moderna, crise melancólica de sol posto! E, depois disso, Vicente de Carvalho será considerado como deve ser: - o grande lírico deste tempo!

Vicente de Carvalho, como Gonçalves Dias, canta a Natureza. Não como os bucólicos do Latium. A sua expressão poética é profunda e ilimitada. Virgílio era linear. É o mavioso e sonoro pássaro azul de nossas florestas e dos nossos mares. Ele sente, como nós sentimos e não podemos dizer, o encanto da miragem, a sedução sadia da esperança. O fracasso existe? Que importa. Nós não alcançamos a felicidade que sonhamos? Que importa. Canta-se, porque

"Nem é mais a existência, resumida

Que uma grande esperança malograda."

Sonha-se, porque o futuro diz:

"O sonho é tudo.

Eu, sobre as tuas pálpebras acudo

A poeira da ilusão!... sonha e bendiz!

Eu sou o único bem porque te engano,

E o desgraçado coração humano,

Só com o que não possui é que é feliz."

Vicente de Carvalho, depois de ter ouvido, além dessa voz, a voz do passado e do presente, exclama, cheio de desejo tropical:

"Beijos dos lábios da mulher amada

O único bem és tu!"

O amor, Vicente de Carvalho poetizou-o, com pujança pictórica, vulcanicamente:

"Eu cantarei de amor tão fortemente."

Cantou-o sim, fortemente, transbordante de poesia e de emoção. O beijo de mulher!

"Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,

De céu de amanhecer, franjado em rosicler...

Entreabriu-os Satã? e enchendo-os de veneno,

Sorriu. Tinha inventado o beijo de mulher".

Poeta que não canta o amor não é poeta. Porque o amor, como a poesia, é integração, é harmonia, é música, é luz!

"No começo era o amor", diz o filósofo".

E é desse amor de poeta individualizado que nasce expansivo em Vicente de Carvalho, o amor universalizado, o espírito franciscano diante da Natureza. Vicente de Carvalho pensa:

"A vida é para mim como a névoa de um sonho

- Névoa confusa de um sonho material

A que somente o olhar, de certo modo, e mal,

Dá, com as formas e a cor, expressão e sentido.

 

Não desdenho do tato e não desprezo o ouvido:

Conheço bem aquela 'inefável pressão

Da mão amada quando encontra a nossa mão.

E brandamente, e como achando um ninho pousa..."

Vida é esse deslumbramento e essa ternura em procura de luz, em procura de cores, em procura de formas, em procura de amor. Vida é embevecimento diante da paisagem frondosa ou limpa, da paisagem verde como o mar verde, do céu azul como os olhos azuis? Vida é piedade e humanização de vida - Dante diante do Inferno, Vicente de Carvalho diante dos cativos, exaustos, dos fugitivos da escravidão pelas escarpas da Serra do Mar!

Nessa poesia então de Vicente de Carvalho tudo se harmoniza, tudo tem centelhas divinas e humanas. As figuras marcham, vivem, anseiam, palpitam. Não são sombras errantes geradas no pavor. Na paisagem estuante e bravia elas têm relevo, destacam-se como criaturas homéricas.

A paisagem não é apenas o fundo do quadro. Não, elas fazem parte integral do drama, como nas pinturas pré-rafaelistas. Têm claros e escuros. Têm cambiantes suaves. Agita-se, dramatiza-se. Veste-se de espiritualidade trágica e humaniza-se:

"Acesa num furor de seiva transbordante,

Toda essa multidão desgrenhada - fundida

Como a conflagração de cem tribos selvagens

Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a via

Na confusão da noite, a confusão do mato

Gera alucinações de um pavor insensato,

Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta:

Lembra - e talvez abafe - urros de onça faminta.

A mal ouvida voz de trêmula cascata

Que salta e foge e vai rolando águas de prata.

Rugem sinistramente as moitas sussurrantes,

acoitam-se traições de abismos numa alfombra...

Penedos traçam no ar figuras de gigantes.

Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra."

E nessa paisagem ofegante, a longa fila de cativos anima a sua tragédia sanguinolenta e obscura.

Vicente de Carvalho consegue todos os efeitos possíveis com esse pequeno e intenso drama de nossa nacionalidade. Nele não a revolta indignada de Castro Alves... Há o drama, o drama sentido pelo artista, universalizado por ele!

***

A vida é uma flor; o mundo uma fonte a correr; A fonte foge, salta por entre seixos e pedrouços, despenha-se, ganha os plainos verdes e é espelhante como a sinceridade e também, às vezes, é turvo como a hipocrisia. E vai para o mar, para o grande mar infinito e eterno, para o

"Mar, belo mar selvagem".

- Como escreveu Vicente de Carvalho? Recordo-me. Aprendi em menino. Na escola da Praça da República, com uma professora de feições doentias:

"Deixa-me fonte! Dizia

A flor, tonta de terror,

E a fonte sonora e fria

Cantava, levando a flor".

Concebeu a vida dessa maneira, poeticamente, Vicente de Carvalho, grande lírico de minha terra inédita, poeta da minha devoção, poeta do meu amor...

Motta Filho.



Imagem: reprodução parcial da página original

 

Rosa, Rosa di Amore...

Quante volte si rileggono de pagine di questo poema meraviglioso sentendo sempre un brivido scorrere in tutta la persona, como uno spasimo che ci tormenti senza posa e senza fine, perché carezzante un'immagine muliebre purificata nel nostro spirito dal misticismo della nostra passione!

É un drama umano, che esprime dieci stati differenti dell'anima, lanciata vertiginosamente al sogno dell'amore. Potrebbero chiammarsi i dieci periodi della vita spirituale, perché tutte le anime hanno vissuto quegli stessi momenti sotto il fascino poderoso di una visione adattata alla propria idealitá, offrendo la purezza di un sorriso, la soavitá d'uno sguardo, l'eleganza d'um gesto, l'incanto d'una movenza, la dolcezza e la fraganza d'un bacio.

I personaggi di questo dramma non hanno tipo fisico né nome: sono un uomo ed una donna che si amano. Impersonalmente perció il Poeta sublima la sostanza nella beatitudine di un conforto, che passa sopra lo spasimo del senso con la virtú materiata di una carezza, dandogli il rifrigerio di aneliti deliziosi.

E con lui anche noi naufraghiamo dolcemente nel sogno. Un sogno che rappresenta inquel momento la sola forza, l'unica veritá dell'Universo. E vediamo la dolce figura, fatta in similitudine del nostro desiderio, venire verso di noi diafana e sorridente, como ad aprici le celestiali bellezze della vita.

Occhi verdi - Mattinata di sole - Ore di amore - Prima ombra - Cader delle foglie - Disillusa - "Saudade" - Serenata - Il giorno dipoi dell'amore - Ultima confidenza - sono le dieci elevazioni dell'anima; sembrandoci peregrinare accanto ad un essere, che abbia la virtú e la dolcezza del sovrumano, e que ci conduca pian piano, soavemente ed ebbramente, alla gioia suprema di conoscere, pur una volta, cosa potrebe essere l'amore nell'esaltazione di tutti i sensi della nostra fragile vita.

Questa sintesi amorosa, per la prima volta tentata e descritta nella letteratura brasiliana; questo poema cosí piccolo per estensione, ma cosí grane per concezione e per lirismo, é un'opera d'arte compatta e completa, da cui trasparisce la piú perfetta vita morale. I turbamenti degli stessi problemi ideali, che hanno agitato la feconda vérsatilitá di grandi scritori moderni come Ibsen e Meredith, Dostoievski e Niesztche, non hanno trovato in Vicente de Carvalho la tendenza egoistica, frutto d'un senso d'insoddisfazione insanabile, di voler personificare la mole del proprio lavoro con intuizioni volontarie, forzose ed aggettate. Questi Grandi, vogliosi di veritá, ma di veritá personale, hanno eretto col proprio braccio i piú mostruosi monumenti al proprio iddio; e noi rimaniamo veramente stupefatti et abbagliati dinanzi alla mole straordinaria della loro, opera Quisi piú peró della grandeza, della loro opera ci stupisce la loro forza di penetrazione, che trapana lo spessore di una sostanza comune a tutti ed arriva a conoscere quello que di piú intimo, di piú impercettibile, di piú insondabile esiste nel tragico succedersi delle lotte interiori.

Padroni di queste astrazioni informi, quali materie incandescenti che aspettino, con la virtú del raffreddamento, la loro forma definittiva, essi foggiano, concretizzano sotto la tensione d'una volontá eatice le proprie idee, facendone il punti precipui delle loro opere. Ma quelle opere, agitate da soffi di venti sconosciuti, rischiarate da luci nuove ed immerse in laberinti spaventosi poggiano tutta la maestositá della loro mole sopra una base, che non ha nulla piú di comune con la Natura e contutto ció, che della natura emana, agitando la vita ed il pensiero. Fra noi e quei grandi constatiamo perció l'esistenza d'un vuoto, di qualcosa di sterile come un deserto, perché essi non crearono sopra un terreno comune a tutti, dove fosse facile incontrarci ed intenderci.

Vicente de Carvalho invece se é gettato con volontaá di abbandono con rassegnata rinunzia in braccio alla Natura; e delle piú liei cose, dei piú impenetrabili motivi, delle piú impercettibili cause, dei sentimenti piú naturali forma un complesso misto di grandiositá e di dolcezza, che ci trascina pieni d'incanto, naturalmente, verso la comprensione delle piú soavi virtú umane.

Di tutta la mole turbinosa, la cui penetrazione ci offusca il pensiero, Egli coglie l'intimo e ne fiorisce il verso. Il piú profondo problema di vita interiore si risolve in una pausa di beatitudine imbevuta da un senso di quietudine pieno di speranza, rivestita di colorazioni che la natura circonstante intona come motivi di dolcezza elementare per la grande invocazione dell'anima alla Felicitá.

Di questa spaziosa sintesi della creazione, chiamata Vita. Vicente de Carvalho, come Dante nella Commedia e como D'Annunzio nelle Laudi ha attinto tutti gli aspetti per transportarci d'un subito dalla furia lutulenta alla gioconditá serena e celeste, aprendo dinnanzi alla nostra conscienza martoriata una macchia tremolante di sole, che l'abbaglia e la inebria.

Egli é perció poeta umano per eccellenza. Sfogliando le pagine del poema sentiamo qualcosa passarci nell'anima, negli occhi, in tutte le vene. É qualcosa di vertiginoso, che solo il sentimento umano puó produrre. Son conme le foglie della rosa che incantano di belleza ed inebbriano di profumo. Rosa... rosa!... eterno simbolo d'eterno amore!... Rose d'ogni belezza e d'ogni colore voi siete l'eterna primavera della vita. l'eterna leggiadria che inghirlanda l'anima avida di figure di sogno.

L'anima umana, cosi complessa e turbinosa, riposa sempre ingenua e tranquila con la memoria del suo grande amore, insieme all'anima consolatrice dei fiori.

Rosa, rosa di amor...

Augusto Marinangeli



Imagem: reprodução parcial da página original

 

Vicente de Carvalho

(Fragmentos duma saudade e duma conferência)

"Como os dias são longos e como os anos são curtos!"

Parece que foi ontem! Parece-me vê-lO ainda: a figura magra, o perfil laminado de ironia, o olhar enternecido de piedade, e aquela máscara tão sua, bien racée, onde a barba em ponta, punha uma evocação aristocrática de Henrique IV.

Parece-me ouvir-lhe ainda a voz, aquela voz que dava à palavra do mágico palestrador uns relevos metálicos de moeda e umas inflexões macias de penumbra.

Evoco o Indaiá - E dentro da manhã luminosa, recorta-se o vulto do Mestre, o largo chapeirão ensombrando-lhe os olhos, o cigarro, o indefectível Olga ao canto da boca, a manga vazia flutuando ao vento, a mesma paz interior envolvendo-O todo, e junto d'Ele, e ante Ele, a ampla, a vigiliana paisagem, desdobrando-se, distendendo-se em aléns azuis, azuis... ... ...

O Indaiá! Quanta poesia e quanta garoupa!

... ... ...

O Indaiá! Era p'r'ali que o Condor pousava, quando fugia à "gaiola da Civilização". - O Condor mágico, em cujo peito arrulharam sempre nossas mais líricas e brasileiras juritis.

Era ali que Ele se encontrava a si mesmo, ouvindo os seus nobres silêncios, integrando-se na sua própria finalidade de contemplativo, completando-se dentro da Natureza, mediunizado, num esotérico desdobramento dos seus maravilhosos mundos interiores... Era o Bom em face da Beleza. - Daí a sua Alma em sua Obra! Sincera, porque simples!

Há em seus versos a grande coragem de nosso ambiente. - E nossas coisas, tudo que é nosso, tudo que palpita dentro dos nossos momentos cósmicos, vive também e gorjeia, na límpida despretensão de toda a sua obra. - Vicente, não teve, por isso mesmo, a preocupação do rico. - Teve apenas a intuição do belo. - É a fonte sonora...

Veja-se. - Não há em toda sua obra esse rebuscado garimpo vocabular, essa torturada ânsia de neologismos, de onomatopéias bizarras, de arrevesadas exumações, que emprestam uma mirabolante impressão do "novo-rico" em arte.

Há a língua no que esta canta de mais puro. - Seus verbos têm vigor como sua adjetivação tem oportunidade. Há a poesia no seu verso. E em todo o bloco imperecível, rodiniano, da sua obra, há toda aquela elegância mental, a que um lírico milagre de intuitos honestos reveste de nervos sadios.

... ... ...

... ... ...

... ... ...

Parece que foi ontem, que O levamos, pela tarde, descorada, aquele recanto do Paquetá, onde o deixamos para sempre...

Parece que foi ontem, ainda, que suspendemos, junto deste punhado de terra, nossa lâmpada votiva de saudades...

... ... ...

Ontem e sempre.

Ibrahim.



Imagem: reprodução parcial da página original

 

Vicente de Carvalho

(História anedótica de nossas relações)

Um colega me disse:

- Aquele é Vicente de Carvalho.

Foi em 1916. Eu cursava a Academia. Atravessava o Viaduto do Chá para ouvir o dr. Veiga Filho expor um ponto de Filosofia de Direito. Como o sol laminasse de ouro o céu e como a manhã fosse um esplendor, em vez de pensar em Kant, em Spencer, em Ihering, eu tinha a alma cheia de versos. Vicente, com seu fraque discreto, sua barbicha em triângulo, estatuava-se sob a ponte metálica como um ciclope, enchendo para mim, com seu vulto, a cidade e o mundo! Eu seguia fascinado.

O Poeta. Eu admirava Vicente com uma admiração totêmica, de zulu apavorado que adora um fetiche. Lera os "Poemas e Canções" como os sacerdotes hindus lêem os livros védicos, ritualmente.

Segui-o pelas ruas democráticas e bulhentas, importunando-o com uma curiosidade que acabou por afligi-lo. Vi que se voltou várias vezes, cenho duro, barba híspida, irritado com a inquietante constância da minha presença. Fosse eu menos criança e ele me tomaria por um secreta...

Depois, sempre que encontrava o mestre num acaso de rua, uma perturbação profunda punha-me arrepios nas carnes. Eu sentia nele a glória... E ele nem dava por isso.

A glória!... Vicente tinha mais que pensar, dentro da ciranda dos seus negócios de jurista e de industrial empreendedor e ativo. Na rua era um mortal organizado para a sua vitória utilitarista, com um alto senso de que é bem pior ter "apuros de dinheiro" que "apuros de linguagem". Que lhe importava a admiração errante e anônima do loiro fedelho que eu era, a ritmar meus versos pelas sístoles e diástoles do meu coração de dezenove anos, crente como um sudra, sonhador como um árabe?

Eu hoje compreendo a psicologia indiferente e pragmatista do mestre, sonhando o poema de um vapor novo e alcatroado, a serviço de cabotagem para a sua companhia de navegação, ou a vitória de uma reivindicação vultosa, com tanto por cento fixado no contrato do cliente arteiro, porque - basta de sonhos! - é mister ser prático neste século de águias e de plutocracia! Para erguer seu sonho bastava-lhe o recolhimento noturno no seu castelo miraculoso, durante as ariscas horas em que embalava, com a cadência dos seus maravilhosos alexandrinos, o sono eterno do "Pequenino Morto"...

A vida - demônio implacável de olhos verdes - lhe mostrava a família vasta, a querer o conforto e o bem-estar que seu amor paterno sonhava; hostil às letras a cidade egoísta e cosmopolita, não selecionava os valores pelo gênio; classificava-os comercialmente pela bolsa. E como o grande romântico tinha, ao mesmo tempo, o senso real das coisas, a golpes de talento amoedava sua honesta fortuna, mostrando que o artista não o ilide e que a mão que plasma a beleza ajunta, quando quer, o seu quinhão de ouro...

Essa é a outra face miraculosamente linda da sua excepcional personalidade. Vicente de Carvalho foi o exemplo inteligente do homem e do artista.

Eu publicara Moisés. Enviara meu poema ao mestre, que m'o agradeceu na efusão medida e meditada de um cartão lacônico. Publiquei o Juca Mulato. Novo agradecimento.

Quando lhe falei pela primeira vez, foi na Vila Kirial. Lembro-me da sua figura magra, de linhas satânicas, recostada numa cadeira de vime, na sacada cheia de artistas. Ao declinar meu nome, disse:

- Menotti Del Picchia? Muito prazer... O senhor é o único poeta brasileiro que possui um cartão meu...

- Estou desvanecido com a honra, mas peço licença para avivar a memória do mestre: possuo dois cartões seus. Um sobre o Moisés, outro sobre o Juca Mulato...

- Dois? - retrucou Vicente, surpreendido da sua prodigalidade. - Pois eu não tinha essa idéia. Imaginei que lhe tivesse enviado apenas um cartão...

Os presentes entreolharam-se. Eu ignorava completamente o justo, mas excessivo orgulho, do grande poeta. Depois conheci-o melhor, mais intimamente. E vi a alta consciência íntima que ele tinha de seu valor. Ninguém lh'o disputava. E como sempre fui dos que o amaram, procurei sempre exaltá-lo, porque Vicente de Carvalho foi, é e será sempre um dos maiores poetas da minha pátria!

Menotti del Picchia


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