Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult008m33.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/27/14 11:19:17
Clique na imagem para voltar à página principal

CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-III-02)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 254 a 260):

Leva para a página anterior

Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

Leva para a página seguinte da série

III – CAVALEIRO DO IDEAL

2

O dr. Silvério Fontes se dedicou mais ao estudo da sociologia que lida com o material humano, desvenda as leis estáticas da vida (capital, família, linguagem, governo temporal e espiritual) e as leis dinâmicas do desenvolvimento social (meio, trabalho, técnica), de mais interesse para a sua inteligência lúcida, conquanto a complexidade desta ciência o obrigasse a profundas meditações.

Ao mesmo tempo que, em 1894, pelas suas diligências de médico e higienista, aplicando as teorias de Pasteur, evitava que a cidade de Santos fosse assolada pela peste bubônica e reaparecessem mortíferos surtos de febre amarela, o dr. Silvério Fontes, em contato com a miséria do povo e contemplando a displicência dos abastados, mantinha discussões violentas como um titã, para convencer o ambiente social das reformas inadiáveis dos seus costumes familiares, pessoais e coletivos, e da adaptação das medidas profiláticas de prevenção contra as doenças.

Nesta batalha das suas convicções médicas e científicas, o dr. Silvério Fontes lutou como um bravo e herói, contra o carranciscmo dos conservadores, contra os próprios intransigentes colegas, contra as autoridades constituídas, pelas suas intermináveis e burocráticas protelações, no exame dos problemas sociais urgentíssimos.

Só, sem nunca temer a luta, enfrentava os adversários, com nobreza e liberdade. Em defesa do seu altruístico idealismo, sofreu infindas amarguras. Sentiu-se desambientado e se afastou da vida pública, para se consagrar aos estudos sociológicos e à medicina. Manteve-se intransigente em seus princípios materialistas até a morte, e jamais soube negar favores e conselhos aos amigos e aos admiradores do seu gênio, sobre cujo caráter Martim Francisco sobressaiu o traço principal, definindo-o: "Um homem que nunca pediu e tudo recusava".

O dr. Silvério Fontes constituiu família, em Santos, consorciando-se com a ilustre dama paulista, de tradicional família santista, d. Isabel Martins, filha do coronel Francisco Martins dos Santos e de d. Josefina Olímpia de Aguiar Andrada Martins dos Santos. Do consórcio nasceram muitos filhos. Nasceu o primeiro em 1884, o Zezinho, menino prodígio admiração e enlevo dos saraus artísticos e literários da sociedade santista.

O dr. Silvério Fontes, desde a mocidade, consagrou-se aos imperiosos deveres familiares. Tanto na época dos estudos, no Rio de Janeiro, como no exercício da Medicina, em Santos, vivia absorvido na preocupação de dar à família todos os cuidados paternais, e não lhe restavam horas ociosas para o convívio com a mocidade boêmia do seu tempo. A severidade dos estudos filosóficos lhe impunha rigorosa disciplina mental que não permitia largas divagações pelo mundo das fantasias poéticas.

O dr. Silvério Fontes observava, como sábio, o evolver dos fenômenos sociais no Brasil. Orientou-o, nessas pesquisas, primeiramente, o positivismo de Augusto Comte, conhecendo-lhe a obra toda, cuja doutrina comentava entre os amigos. Nos primórdios da República, tanto antes, através da campanha da abolição da escravatura, como depois da proclamação, foi sob a orientação dos sapientes e imortais princípios positivistas que foram encaminhados os iniciais passos do regime republicano.

No entanto, pela observação aguda e pela experiência de alguns anos da república, no Brasil, o dr. Silvério Fontes notou a ineficiência da filosofia positiva na prática da política nacional. Como base fundamental da educação do povo, o positivismo se manifestou excelente, porque filosofia alguma conseguiu fornecer ao homem o conhecimento real e sistemático da verdade científica, com a qual se libertou da nebulosa metafísica, aliás, criadora, desde tempos imortais, dos mitos religiosos, das crendices fantasmagóricas.

O dr. Silvério Fontes, acompanhando o progresso do espírito humano, pelas doutrinas dos maiores mestres da época, previu, de maneira fenomenal, o futuro da sociologia com aplicação na política das nações, sob a forma de socialismo científico, ou melhor de materialismo histórico.

O estudo das obras de Karl Marx, Benoit Malon, Gabriel Deveille, Frederico Engels, Augusto Bebel, Jean Jaurés, Enrico Feiri, Magalhães Lima, Emile Leveleye, Silva Mendes, Proudhon, Bakounine, Kropotkine, Réclus, deu ao dr. Silvério Fontes o arcabouço da plataforma das questões sociais que deveriam se reivindicar, no Brasil, naquela época.

Da leitura meditada desses princípios, de mistura com a experiência dos fenômenos sociais destacados e determinados pela atividade humana, imperativa e constante, o dr. Silvério Fontes esboçou o plano de nova política, preconizada por Augusto Comte, na reorganização administrativa e econômica da República.

Tomando uma atitude mental idêntica à de Ramalho Ortigão, a questão política cessou de interessar ao dr. Silvério Fontes, ao passo que a questão social de dia para dia se lhe impunha com mais instância e mais violência. Pois então, penetremos no Castelo Social, utopia do Futuro, idealização deste ilustre filósofo. Encontra-se erguido nos píncaros das montanhas do Sonho, cercado de abismos e fossos intransponíveis.

A história das sociedades humanas, contava o dr. Silvério Fontes, desde que se constituíram e onde quer que evolvessem, é a história mesma da luta de classes; e desse pugnar incessante resultou, com o decorrer dos tempos, a eliminação de algumas dessas classes, podendo-se atualmente considerar que somente duas permanecem, extremadas em campos adversos, inconciliáveis em seus interesses: tais são a classe da burguesia e a classe dos assalariados (ao invés de Augusto Comte com a lei dos três estados, a humanidade passou por vários períodos – era da escravidão, era do feudalismo, era da burguesia, era do proletariado).

Na primeira (a burguesia),a listam-se os indivíduos que, dispondo dos meios de produção (terras, minas, máquinas, fábricas, transportes, capital-moeda), se apropriam duma parte do trabalho dos outros, infelizmente a grande maioria, que não possuem tais elementos.

Na segunda classe aglomeram-se os operários ou trabalhadores, que, só dispondo de sua força muscular ou de suas aptidões intelectuais, se veem compelidos, pela necessidade primordial de viver, a ceder sua força de trabalho por uma vantagem ou compensação inferior à que eles próprios produzem.

É bem de ver que certos grupos existentes no organismo social e que durante algum tempo foram, e ainda hoje são, erroneamente tidos como classes distintas (como o clero, a magistratura, a milícia, o funcionalismo público civil, os legisladores e outros, que exercem certas profissões liberais), estudados em sua estrutura e vida íntima, não passam de instituições criadas e mantidas pela burguesia, para a defesa de seus interesses, e os indivíduos que as constituem são arrebanhados em ambas as classes, mormente na dos expropriados.

É intuitivo que, se uma classe – a burguesia – vive à custa da outra – o operariado -, porque o capital, sob qualquer de suas formas, nada produz sem o trabalho, hão de se achar em contraposição de interesses; e daí a animosidade, as prevenções, os conflitos repetidos, a luta, enfim, permanente.

Enquanto o desenvolvimento agrícola, comercial e industrial não ultrapassou certa órbita, convertendo-se afinal em monopólio do capitalismo, e em armas mortíferas contra as classes trabalhadoras, essas indisposições, essas prevenções se mantiveram latentes, sob a aparência de harmonia entre operários e patrões, coexistindo num regime quase patriarcal.

Desde, porém, que a esses três ramos de aplicação da atividade humana, exercidos em pequena escala, vieram dar maior expansão os progressos científicos, as portentosas invenções mecânicas, surgiram as grandes oficinas, a divisão do trabalho, a maior facilidade das comunicações e a enorme extensão das trocas comerciais.

Desapareceu então aquele modus vivendi entre pequenos burgueses e assalariados; e prorrompeu franco, intenso, cada vez maior, o antagonismo entre as duas classes, cada uma procurando haurir da outra a maior soma de interesse, de bem-estar próprio.

Se, por um lado, o assalariado, na inferioridade de sua posição a respeito do patrão e na escassez de meios para subsistir, se esforça por que seu labor vá sempre diminuindo mas seja sempre melhormente retribuído, por outro lado o patrão, o dono do capital, somente cuida de obter do assalariado a maior soma de trabalho por um preço cada vez mais restrito.

Se ao primeiro pouco importa que o patrão sofra com a concorrência de seus colegas, ou antes seus rivais na produção, também ao patrão pouco importa que o salário pago (quando pago!...) ao seu operário lhe chegue para as mais urgentes necessidades da vida – que de conforto, e menos de gozo, não se cogita.

À indiferença com que o operariado em geral assiste às contrariedades e catástrofes sobrevindas aos patrões – salvo o desarranjo econômico que sofre com a inesperada suspensão do trabalho -, corresponde bem a impassibilidade com que os patrões olham para as privações, os sofrimentos físicos e as torturas morais do assalariado, oriundas do próprio serviço, em que se lhe consomem as forças, se lhe arruína a saúde ou se lhe extingue a vida, pelo excessivo labutar ou pelas deletérias condições higiênicas em que este lhe é exigido, salvo sempre o pesar de perder uma boa máquina animada.

Uma e outra classe bem sabem que na solução das questões suscitadas entre elas não prevalece, não entra mesmo em pequena escala, o sentimentalismo, nem o próprio espírito de humanidade, nem a justiça, nem a razão, mas somente a força ocasional, a violência ou a necessidade, para cada uma impor à outra o que mais convém à sua comocidade.

Contra a exploração dos patrões, a exigência dos assalariados; tal é a fórmula da luta hodierna, cada vez mais renhida quando irrompe, cada vez mais fácil de se repetir, quando apaziguada. É assim que as greves, as manifestações mais significativas desse antagonismo social, estão a se generalizar, sempre mais frequentes, mais imponentes pelo número, mais ameaçadoras pela resistência do operariado, respondendo à opressão, sempre maior, do capitalismo.

Países onde essas manifestações eram, até há pouco tempo, desconhecidas (em 1902!), inclusive o vocábulo que as designa, tem-nas visto explodir e se alastrar de modo assustador, e por vezes multíplices. Nem as tem podido evitar o obscurantismo dos governos que, impulsionados pela necessidade de sua própria conservação, as procuram atenuar por meio de concessões paternalmente aconselhadas ou aparentemente impostas à burguesia, que as sustenta como delegação sua própria.

Dão em si mesmos um golpe, cautelosamente, ou ressecam prudentemente um de seus membros menos essenciais à vida, contanto que continuem a viver. Ceder de todo lhes parece o suicídio; e o poder não se suicida… senão quando sente que inevitavelmente vai morrer.

A compreensão que o operariado adquire, da iniquidade de suas condições econômicas, lhe desperta, por um estudo mais atento, a consciência da correlativa iniquidade das suas condições políticas, na sociedade em que vive –se não é antes vegetar um tal viver.

Sempre, e é o caso geral, que essa classe se deixa adormecer no indiferentismo para o movimento político, os governos, feitura da classe burguesa, não lhe curam dos sofrimentos, nem até lhes prestam atenção. Toda as concessões, todas as vantagens, todos os melhoramentos, com o rótulo de públicos, são a benefício, próximo ou remoto, da classe possuidora do capital, com detrimento dos explorados; e se estes tentam alguma resistência, sob as intoleráveis angústias econômicas em que se estorcem, a intervenção do Estado, vera effigie da burguesia, é sempre no sentido de amparar os interesses dos espoliadores, privilegiados, seja embora preciso abafar sob as armas, contra os ditames da justiça e da moral, as queixas inaudíveis dos espoliados.

Se alguma vez cedem, é por uma contramarcha, diante da maior força dos que clamam e ameaçam. Tanto os mais profícuos movimentos políticos, em qualquer país, se esteiam no mal-estar econômico do povo! Dessa origem, brotou a magna revolução do século antepassado
(N. E.: século XVIII, portanto), na França, e com ela o alargamento das liberdades políticas no mundo civilizado, embora essa transformação fosse, desgraçadamente, desviada de sua diretriz pela burguesia que, atraiçoando os direitos da plebe confiante, arteiramente a converteu em instrumento de seu próprio interesse, pondo-a sob sua dependência, apropriando-se dos bens confiscados ao clero e à nobreza, ficando assim em desequilíbrio e contraditórios o regime político e o regime econômico, criados pelo movimento revolucionário.

Passado esse movimento histórico, reconhecendo sua ingenuidade e o abuso de que fora vítima, verificando a dupla causa de seu mal-estar, de sua degradação moral, intelectual e física, isto é, o antagonismo econômico e o consequente antagonismo político em que se acha com a classe burguesa, a classe operária veio a compreender, afinal, que para se libertar da opressão em que tem jazido, através do tempo e do espaço, servilizada à outra classe que a desfruta, só um meio existia, lógico, fatal, inelutável: organizar-se em partido de classe, independente de quaisquer partidos de origem burguesa, e conquistar o poder político, como meio de realizar a emancipação econômica, estabelecendo, sob todos os aspectos, o regime da liberdade para todos, da igualdade entre todos, sem distinção de sexo, sem distinção de categorias, sem distinção de nacionalidades e raças, sem o preconceito de Pátria, acidente puramente geográfico.

Sobre estes sólidos princípios, o dr. Silvério Fontes organizou, em 1889, em companhia de Sóter de Araújo e Carlos Escobar, o primeiro Centro Socialista da América, para a ação política, redigindo, a 12 de dezembro de 1889, o seu fatídico Manifesto Socialista ao Povo Brasileiro que, ante as dificuldades criadas pela polícia, somente foi publicado, em seção paga, ineditorial, no jornal paulistano O Estado de São Paulo, a 28 de agosto de 1902, numa quinta-feira; e fundou, mais tarde, o jornal A Questão Social, de que se publicaram dezenove números, hoje raríssimos, também o primeiro órgão da imprensa socialista no Brasil, de publicação quinzenal, para a propaganda dos ideais libertários e para defesa dos direitos do proletariado, enfim órgão oficial do Centro, cujo primeiro número surgiu a 15 de setembro de 1895, com a bandeira seguinte:

"
Apresenta-se hoje na arena jornalística A Questão Social, defendendo uma causa justa – a reivindicação dos direitos do proletariado. Na Europa, onde o socialismo chegou a seu período de maturação histórica, a propaganda via fazendo grande proselitismo. Ali, como na América do Norte, não se confunde a doutrina, que já entrou em sua fase positiva, nem com a república, como a ensinou Platão, nem com a utopia, como a idealizou Tomaz Morus. Resultado de estudos acurados duma plêiade de pensadores, representando o primus inter pares Karl Marx, o socialismo encontrou, principalmente na Alemanha, sua base científica. Não queremos dizer com isso que o problema social seja uma reforma exclusivamente econômica; que o socialismo seja unicamente uma questão de ventre. É incontestável que deve ocupar o primeiro lugar a transformação econômica, pois dela nascerá a principal reivindicação proletária. Entretanto, forçoso é confessar que as aspirações humanas devem ser integralizadas e a questão social passa a ser complexa, isto é, tanto literária como filosófica, tanto afetiva como estática, tanto moral como política. E seremos nós indiferentes ao estudo desses problemas, quando talentos de primeira ordem tanto se têm preocupado com a sua difícil solução? Entre nós, as condições atuais não nos permitem encarar o socialismo como medida que se imponha por uma agitação revolucionária. Desfraldando a bandeira do coletivismo reformista, propõe-se A Questão Social, sem paixões, que considera antagônicas à ideia de progresso, a lutar tenazmente para que sejam mais rápidos os efeitos do movimento evolucionista científico, que deve dar em resultado a nova organização da Sociedade. Por maiores que sejam as preocupações dos excessivamente tímidos e as apreensões dos privilegiados, a repercussão, no Brasil, das ideias que se agitam no velho mundo, há de ser fatal, a bem dos interesses gerais da coletividade. Oxalá, o esforço que ora fazemos, pugnando pela implantação de doutrina regeneradora, encontre eco em todos os que compreendem o alcance das leis altruísticas, em todos os que combatem pelo nivelamento das classes, entrando com o contingente de sua colaboração para que se levante, em breve, o majestoso edifício da solidariedade e da justiça sociais".

Durante largos anos, o dr. Silvério Fontes e seus companheiros lutaram bravamente na disseminação das suas ideias e sustentaram, com sacrifício, o jornalzinho. O Centro Socialista, somente fundado a 30 de maio de 1895, tornou-se um instituto de alta cultura filosófica, literária e científica, sem preocupações políticas, de grande influência no acanhado meio social de Santos e na promissora classe operária.

O Centro Socialista de Santos, contava Martins Fontes, atuando através de conferências semanais e pela vulgarização por meio de opúsculos, durou dois anos. Todos os problemas que atualmente (isto em 1933) se debatem e estabelecem, foram pregados nesse período libertário e nessa associação de operários filósofos.

Não há maior triunfo para Santos. O tempo o demonstrará. Silvério Fontes, Sóter de Araújo e Carlos Escobar foram os pioneiros da generosa causa de liberdade dos trabalhadores do Brasil.

O Partido Socialista Brasileiro iniciou, assim, auspiciosamente, as suas atividades, cuja organização teve seu fundamento no Centro Socialista de Santos, com sede inicial à Praça da República, nº 48, depois na Rua de São Bento, nº 67, por fim na Rua General Câmara (número incerto). O dr. Silvério Fontes foi encarregado de elaborar o Manifesto que os socialistas dirigiram às classes laboriosas do país, no qual colaborou eficientemente outro notável socialista, dr. Vicente de Sousa, do Rio de Janeiro.