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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-II-16)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 225 a 230):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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II – CAVALEIRO DA ARTE

16

Martins Fontes projetava escrever sobre a estética da língua portuguesa. Recolheu o material, organizou a bibliografia e esboçou o plano. O trabalho exigia assiduidade no gabinete, sentado à mesa, longa paciência de pesquisador, profundos estudos nos textos dos escritores clássicos, meditação pacata, longe de preocupações caseiras e profissionais.

Era-lhe impossível resignar-se ao recolhimento obrigatório, porque a sua vida agitada, o seu temperamento irrequieto e dispersivo a isso se opunham cruelmente. Escrever em prosa já era sacrifício e nem sempre sentia disposição para tal martírio de proletário das letras. Mesmo os versos, aplaudindo um pensamento de Vicente de Carvalho, não os fazia quando queria: os seus versos é que se formavam dentro dele e se plasmavam depois, espontaneamente, fenômeno tão natural como o duma roseira que se desabotoa em rosas.

Martins Fontes quis encarregar-me dessa missão honrosa, mas, como ele, luto contra iguais obstáculos, além de outros fatores essenciais que inexistem no meu psíquico. Outro mais apto encarregar-se-á de executar esse plano.

Martins Fontes lamentava também que jamais se publicasse o dicionário analógico de Olavo Bilac, valiosa contribuição para a estética da língua, cujos originais dormem o sono da eternidade no cofre duma livraria do Rio de Janeiro. Olavo Bilac, Vicente de Carvalho e Raimundo Correia foram grandes estetas, possuíam segredos de técnica, cujos conhecimentos se sepultaram para sempre nos túmulos destes geniais poetas. Martins Fontes recebeu deles a iniciativa da estética da língua. O seu estudo abrangia os sons, as palavras e as frases, que se deviam empregar como as tintas na paleta do pintor, conforme as exigências do quadro, ou como notas musicais sugerindo melodias.

A audição colorida que Martins Fontes empregou em seus versos se fundamenta no emprego adequado das vogais, como o efeito onomatopaico no das consoantes, cujo estudo constitui a fonologia estética. Conforme ensinavam Baudelaire e Maupassant e afirmava Rimbaud, não só os perfumes, as cores e os sons se correspondem na exteriorização da natureza, como também, dentro de nós, confundindo-se, repercutindo-se, em tenebrosa e profunda unidade, sentindo cada qual à sua maneira o colorido dos sons.

Prova-se que as pessoas cegas por enfermidade, as superexcitadas, os artistas de aperfeiçoamento sensorial e visual, enxergam a música, as notas musicais lilás, verdes, azuis, de acordo com seu estado de perceptibilidade; ouvem as cores, saboreiam os sons.

A acuidade visual de Martins Fontes era assombrosa, quando pintava todas as sutilezas da fantasia. Muitos poetas, ou quase todos, veem a aurora cor-de-rosa, ele a via sob múltiplas cambiantes, definindo todas as meias tintas, todos os tons sutis, todos os ancenúbios, tendo termo exato para cada uma das morte-cores. Martins Fontes exaltava qualidade das vogais para a coloração das ideias ou das paisagens.

A legra A lhe causava a sensação de prazer, entusiasmo, admiração, porque é clara, agradável, emocional, com variáveis tonalidades adelgaçadas, funcionando como vogal primacial na maioria das palavras, ou como órgão nas estrofes de grandeza orquestral, tornando os versos cheios de solene majestade e retumbância, imitando repercussões em naves e arcadas de catedral, ou gritos marciais de rebate e alarma.

A vogal E é verde, cinzenta, seca, tênue e leve, semelha o toque de cornetas e trombetas, presta-se à languidez, tristeza, serenidade, à leveza aérea, voejante, enfim revela neurastenia. A vogal I é fina e sutil, triste e tímida, lembrando o violino em gemidos penetrantes. A letra O é sonora e forte, é a voz do contrabaixo, do trombone, do saxofone, própria aos sentimentos impetuosos, rancorosos, tempestuosos. A vogal U é escura, fúnebre, lúgubre, ruído de flauta nos seus últimos murmúrios.

Os ditongos, com duas ou mais vogais, orais ou nasais, proporcionam amplitude às cores sugeridas, efeitos de tristeza, solidão, desolação, ou força expressiva nas onomatopeias. A voz nasal se liga ao olfato e representa manifestação de repulsa, instintiva, e é pejorativa nas palavras, em AO, ARRÃO, ONA. As consoantes são incolores, carecem de som próprio, apesar de se apresentarem como vogais modificadas por específica articulação, mas ganham muito valor quando se acompanham de vogais produzindo movimentos onomatopaicos, quinéticos e acústicos.

As labiais (B, P, M), sós, repetidas ou combinadas, servem para ideias de frouxidão, langor, retumbância, de fausto e grandeza, e para exprimir pancadas repetidas e estalos, porque são cheias, espumosas, fluídas. As labiodentais (F, V) auxiliam a expressão das ideias de sopros leves, de voos, de fugas aladas, ou de fortaleza e luta, a sós ou combinadas. Os sons linguodentais (D, T), sós ou anexos a R, L, N, sugerem pancadas contínuas, baques duros, tiros, estalidos, breves ou longos. Os sons linguopalatais e apicais, simples e compostos (L, LH, CH, J. N) designam moleza, languidez, o marulho e o ramalhar, a ternura e a meiguice, ou se prestam a ideias de chuva e repuxos.

As consoantes guturais (C, G) expressam ideias de brusquidão e briga. Enfim, as consoantes reversas (R, S, Z) que se pronunciam com o bordo anterior da ponta da língua na parte interna das gengivas dos incisivos superiores, ásperas ou doces, proporcionam, respectivamente, ideias e sentimentos de doçura e carícia ou de raiva, aspereza ou de sibilos, vozes de pássaros, zunidos, zumbidos, vozeios.

Com estes elementos sonoros de vogais e consoantes, cada um representando uma nota de música e uma cor, Martins Fontes, empregando-os nas palavras, sob pleno conhecimento da sua técnica, produzia emoções e efeitos coloridos. Martins Fontes se aplicou ao estudo das onomatopeias e concluiu que a língua portuguesa, idêntica a outros idiomas, oriunda do evolver das línguas matrizes onde já se aperfeiçoaram e se vocalizaram as vozes primitivas e imitativas, baseada nos princípios do menor esforço e de transição pela permuta, elisão e adição, era de maneira estrutural onomatopaica, objetiva e subjetivamente.

A atual onomatopeia é um fenômeno de reduplicação. E a palavra, em combinação com outras, pela assonância, pela aliteração e pelo eco, consegue sugerir-nos, ao vivo, todas as vozes dos animais e os ruídos da natureza. Martins Fontes punha imenso cuidado na criação de palavras onomatopaicas, uma das maiores riquezas do seu vocabulário, evitando a cacofonia e sobrelevando a eufonia.

Quanto às palavras, propriamente ditas, traduzindo ideias ora abstratas ora concretas, mereciam de Martins Fontes profundo carinho. Enlevava-se a examiná-las quando lia os dicionários na pesquisa de termos ricos e próprios. Quando não os encontrava a seu gosto, recorria à derivação ou à justaposição, criando o neologismo com sílaba tônica sonora, clara, em grande parte polissilábico, sem predileções pelos agudos, graves ou exdrúxulos, mas que desse a significação exata e oportuna à ideia em elaboração.

Nisto residia o segredo da harmonia das palavras nos versos de Martins Fontes. Frequentemente, dizia ele, um lindo som o fazia parar com a pena no ar, fazia-o sonhar… E saboreava a palavra voo – que expressiva palavra; coração – esta palavra palpita; noivo – estas duas sílabas são brancas, mas de alvura lilial, cortinado, vestido, véu, grinalda, doces, sentimento, ele via tudo branco, alvíssimo, candidíssimo, a sílaba NOI dava-lhe a ideia de intimidade e timidez, ao mesmo tempo, e a outra sílaba VO parecia-lhe inspirar incerteza e pudor; amante – igual no masculino como no feminino, o que ama e, sobretudo, o que é amado; luar – é lindo este vocábulo, o U lembra a noite e o A lembra a lua; trêmulo – música a negro e neve, que beleza de voz; possuir – que significado junto para o que possui um tesouro, e a mulher é de fato o tesouro supremo!

A fonte principal de neologismos onomatopaicos era a Natureza, mas a Natureza da grande, linda Pátria Brasileira, onde Martins Fontes estudava apaixonadamente o idioma dos passarinhos, poetas como ele, a métrica, as combinações silábicas em estrofes preludiantes, que se vocalizam imitativamente.

Havia versos pipilos, rouxinoleios, cantilenas, galrejos, chalreios de passaredos. E quem prestar atenção verificará que, em verdade, nessa filologia curiosíssima, há interrogações, respostas, risadas, zombarias, ternuras. E a língua portuguesa é assim onipotente para descrever as milhares de vozes na mata, que se assemelham a violinos, violoncelos, cítaras, harpas eólias.

Sob o ponto de vista morfológico, a estética encontra na linguagem os seus primordiais elementos: - o substantivo, o adjetivo e o verbo. O substantivo exprime a essência das pessoas, animais e coisas, reunindo em si os atributos, a generalização de todas as suas substâncias e qualidades, tanto comuns como próprios, concretos e abstratos, com a faculdade de ampliar esses atributos a qualquer vocábulo ou frase quando exerce a função de sujeito ou de complemento duma oração.

Na linguagem clássica, o substantivo predominava nos trabalhos de literatura. Havia a escolha do substantivo na tradução da ideia com exatidão e clareza. Todas as outras espécies de palavras, com exceção do adjetivo e do verbo, representam papel secundário porque servem somente para determinar, substituir, modificar, ligar, coordenar ou subordinar aqueles elementos entre si ou entre as suas orações, cuja repetição, apesar de enfadonha, não altera a harmonia.

Estas palavras, na maioria invariáveis, são a poalha do estilo. O estilo se classifica pela quantidade e qualidade dos substantivos, adjetivos e verbos ou pela parcimônia ou abuso dos elementos secundários, das imagens e das comparações, na linguagem do escritor e do poeta, sob a influência das escolas literárias em voga.

O adjetivo é o decorador do estilo, porque, na missão de atributo e predicado, realça o substantivo quando este expõe noções propícias ou pejorativas, sentimentos, faculdades e ações, ou generaliza princípios de ciências e artes.

Acompanhando o substantivo ou o verbo, o adjetivo, manancial valioso do homem de letras, proporciona rica aplicação na pintura exata dum quadro ou dum sentimento. O gosto artístico de cada escritor ou poeta orienta a aplicação moderada ou abusiva do adjetivo.

O verbo é o mais rico veio aurífero da língua portuguesa, em que os intelectuais provam a excelência da sua arte, criando imagens, renovando o estilo e aclarando as ideias. Previnem os estilistas que se evitem os verbos auxiliares de que tanto se usa quando se ignora o verbo apropriado, conquanto sirvam em certas oportunidades em que se requer clareza ou simplicidade analítica por intermédio das formas perifrásicas de qualquer verbo.

O poderoso estilo de Martins Fontes se baseava na escolha e aplicação abundante e sempre exclusiva dos verbos que amontoava na sua prosa cintilante, como se fossem moedas de ouro, esbanjando-as perdulariamente. Assim acumulou os verbos luminosos e ardentes, de mistura e de aperfeiçoamento, os verbos brilhantes e coloridos, numa profusão que lembrava Rui Barbosa.

Tal como Rui Barbosa procedeu na famosa Réplica – monumento de bronze e mármore, manadeiro da língua portuguesa, onde todos se dessedentam -, Martins Fontes, "valiosamente, minuto a minuto, folha a folha, fio a fio, pepita a pepita, nuga a nuga, miga a miga", tesourificava, empilhando nababesca fortuna mental.

Martins Fontes considerava a cidade de Santos o berço da língua portuguesa na América porque, quando chegou a frota do almirante português, Martim Afonso de Sousa, em 1532, fundeando junto à Ilha do Sol, agora Ilha de Santo Amaro, uma sentinela, três dias depois, acastelada na Bertioga, viu que um homem europeu caminhava a passos largos, a agitar uma bandeira branca, sinal de paz em plagas da cristandade, e lhe perguntou:

- Olá, a que vindes? Quem sois?

- Português sou! – respondeu – Glória! Glória à nossa língua!

Era João Ramalho que surgira "do fundo da selva impenetrada, do seio da montanha, saudoso e deslumbrado", e que, pela primeira vez, no coração da terra virgem, ouviu cantar a língua formosa.

Quanto à estrutura sintática, a harmonia, sentido musical das palavras e das frases, é a arte suprema da sua disposição, tendo em vista o som e a cadência, evitando-se o predomínio das consoantes fortes ou a repetição frequente das mesmas vogais ou consoantes, em monossílabos e nasalações monótonas, mesclando-as, quando não sejam aplicadas às onomatopeias.

Consegue-se a harmonia da frase, segredo máximo da arte de escrever, observando a lógica gramatical da ordem direta, alternada com a inversão do sujeito e dos complementos para variar o discurso, cuja ordem está na tradição e no gênio da língua portuguesa; o equilíbrio da proporção dos membros das frases, ora curtas ora longas, conforme a natureza do assunto e o gosto do artista, com os incidentes e as proporções de comprimentos iguais, terminando a frase em sonoridade extensa, havendo, de distância em distância, pausas de sílabas, com bastante variedade na cadência, cuja melodia vá crescendo e se ampliando; e a proporção dos efeitos musicais e do pensamento em sequência continuada das suas mútuas relações sem o desvio da ideia principal, por intermédio de frases incidentes ou episódios inúteis.

Em combinação com a originalidade e a concisão, o estilo, dentro dessa ordem e movimento, se reforça e agrada, produzindo-o ora amplo ora restrito, ora descritivo ou colorido, ora abstrato ou de ideias, e empregando-o na composição literária para os variadíssimos gêneros em verso e prosa.

Os estetas da língua sentenciam que a prosa de perdurável existência em qualquer idioma mostra simplicidade e clareza. Assim pensa o ilustre escritor português Agostinho de Campos, quando desfaz boatos de que a boa prosa portuguesa clássica é exuberante de sintaxes complicadas, de períodos longos e de palavras variadíssimas; quando, contra o preconceito de pobreza de estilo ou de vocabulário, defende a Eça de Queiroz, prosador milionário, genial artista da palavra.

A riqueza do estilo consiste em criar tesouros de arte – arte viva e arte imortal – com as nossas pobres palavras de todos os dias. De conformidade com a demonstração de Agostinho de Campos, através dos escritores e poetas dos séculos XII, XV, XVI, XVII, XIX, desde os Cancioneiros trovadorescos até Camilo Castelo Branco, admirável artista da língua portuguesa, a prosa rica e imortal possui a nitidez do pensamento e de expressão.

O caráter do estilo está no escritor e consiste sobretudo na sinceridade e honestidade literárias; o bom gosto é o guia da proporção e do equilíbrio, sem o qual só podem produzir-se monstros ou abortos; o dom de comunicar e irradiar é a resultante de se ter escrito numa linguagem viva e palpitante, que não é senão a fala corrente do nosso tempo, porque só essa tem vida e só essa se mostra capaz de insuflar vida à obra de arte.

Era desta forma que Martins Fontes queria que se praticasse a nossa língua, despertando o interesse pela sua clareza, pela sua opulência. Também nisto se fundava o segredo do deslumbramento produzido pela prosa de Eça de Queiroz. Praticamente, como esteticamente, só existe aquilo que se sente; só se sente aquilo que se entende ou compartilha.