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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-II-14)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 207 a 217):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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II – CAVALEIRO DA ARTE

14

A poesia contém o privilégio de certa linguagem que, combinada, produz, na sua expressão geral, a música, e particularmente o relevo e o acento. Além disso, a linguagem poética se sobreleva à prosa pela quantidade de processos que a elevam ao mais alto grau de emoção e exaltação. É preciso conhecer na emoção poética em que grau ela se comunica e determina as condições e meios dessa transmissão.

O principal na linguagem é o apropriar-se o artista das palavras que, pela diminuta quantidade de letras, o volume e o som, se aproximem da exata expressão da ideia. As palavras próprias transmitem com mais energia qualquer pensamento. A disposição das palavras fornece grande importância para a harmonia. O efeito poético dum pensamento depende muitas vezes da colocação do adjetivo antes ou depois do substantivo, e do emprego dos tropos, assim como da sugestão de muitas ideias e imagens no menor número de palavras.

Para evitar a fadiga, aplica-se a variedade, a gradação e a antítese. Sermos inteligíveis no que escrevermos, em que brilhe a limpidez da frase – aconselhava e praticava Martins Fontes. Na explanação mais complexa, produzamos a sensação de envolvermos o assunto numa gaza. Externemo-nos com lucidez, para que se note a clareza. A palavra será a conquista máxima, que usaremos com sinceridade porque a clareza é a boa-fé do artista. A essência da expressão, o aéreo, o abstrato da música verbal, equivale ao vago de um perfume.

Pascal, Diderot, Descartes, Hume falam da sugestão, do aroma, de muita sensibilidade. É como a espiral que se desprende das aras, onde se incensam palavras tanto mais claras quanto mais ocultas e indefinidas.

Martins Fontes quisera escrever versos que fossem feitos de fluídos, de dolências sutis, de aroma, de neblina, em semitons, sem palavras. Só a música é capaz de exprimir a pelúcia da brisa, e de dar o prazer de aspirar a volúpia das rosas pelo beijo.

Há, no entanto, a técnica da poesia, elemento complementar e não essencial que se chama versificação. Poesia é emoção traduzida em linguagem elevada. O livro de versos deve lembrar um cálice de licor. Somente os privilegiados dão valimento às sutis quintessências da poesia. As estrofes devem ser provadas, em surdina, sonhando, pelos que aspiram ao divino dom.

Contava Martins Fontes que, quando entrava numa sala e sentia a essência de ardente flor sem que visse qualquer rosa, nem turíbulo a arder, reparava que era de um livro de versos donde se desprendia esse aroma. Os versos do vento são frágeis e breves. A estrofe do vento é formosa mas incompleta. O vento é a miragem do pensamento de Martins Fontes, que tudo o que fazia desfazia num instante, doudejava, desenhava na areia, construía sobre a vaga, erigia palácios de nuvens.

As obras dos poetas, humanas e terrenas, são sonhos, como as do vento. Os poetas e as árvores revelam semelhanças nos sentimentos líricos. Ambos, na primavera, se enchem de esperanças, e no outono, de pomos maduros; fazem versos em colaboração e com a mesma pureza e bondade dão flores e frutos.

O livro de versos lembra um cofre encantado, e aberto é como um anjo cheio de luz, ao qual se chama – meu pai, meu irmão, meu mestre, meu amigo. O livro de versos deve dar a impressão de uma pérola, e ser joia que nos fale de amor. O livro de versos é uma estufa onde brasilha a forja.

A versificação não produz poesia. Na prosa, encontra-se, às vezes, com vantagem, a poesia, e outras vezes esta não pode se desligar da forma. O escritor português Joaquim Costa, consagrando palavras laudatórias a Martins Fontes, afirmou que ele era "um grego, pelo equilíbrio escrupuloso da forma, e um romântico, pela intensidade com que compunha esteticamente a maior parte dos seus temas emocionais".

Neste mesmo sentido, Júlio Dantas, num dos seus últimos comentários, observou que "brasileiros e portugueses devem sentir-se orgulhosos de encontrar entre eles quem soubesse como Martins Fontes fazer vibrar a alma e a sensibilidade da raça".

De fato, o romantismo lhe sublimou o sentimento de profunda emoção que o trazia sempre apaixonado e extravagante de maneiras. O realismo, com a indestrutível verdade sobre tudo que nos cerca, equilibrou-lhe o pensamento ao contemplar a natureza e a humanidade. O parnasianismo completou a obra na modelagem do caráter estético deste grande poeta.

Esta escola, a segunda renascença da arte no século XX, escalpelou os abusos ultrarromânticos e realistas, disciplinando-os. Não obstante, vieram depois os decadentes, os simbolistas, os instrumentistas e os futuristas quadrados e cúbicos, enquanto Martins Fontes se conservou invulnerável cultor da beleza eterna, tal qual a cultuava o genial Eça de Queiroz. A experiência e o estudo moldaram-lhe nova feição literária que reagiu contra o desbarato da mentalidade burguesa: - o neoclassicismo naturista, acompanhando as conquistas do pensamento moderno e da ciência sociológica.

Muitos julgavam Martins Fontes um artista olímpico do verso, em cuja arte preciosa, dizem, se esconde ou se anula o forte sentimento lírico da poesia. Este preconceito correu mundo. Eliminá-lo-iam se meditassem sobre o justo valor da obra do grande Poeta, onde encontramos assombrosa poligrafia sob a perfeição técnica.

A imortalidade de qualquer obra literária e científica se consegue quando o autor reúne as duas características essenciais – erudição e técnica. O sentimento nada vale sem isso, o mesmo que a pedra bruta e informe do diamante. Pois encontramo-las em Martins Fontes de mistura com o sentimento lírico e com a harmonia dos assuntos de toda a obra poética, publicada desordenadamente.

Sempre se julgou, em virtude da sua vida agitada, da sua volubilidade estética, da sua preconceituosa desorientação na diretriz filosófica, quase paradoxal e incoerente, ora místico, ora ateu, aqui libertário, acolá patriota, que não existisse elo em tanta variedade, mas se acompanharmos todas as produções literárias notaremos o arcabouço gigantesco do Templo da Beleza - o Partenão – construído com arte e ciência.

Verão, As Cidades Eternas, Boêmia Galante e Arlequinada são os livros de poesias que ascenderam ao Templo sob o desígnio de Vênus, querendo assim Martins Fontes perfilar, pela ordem, as pedras do monumento consagrado ao Belo.

Tantas vezes lho disse e agora o repito: a individualidade literária de Martins Fontes preocupou sempre os críticos que ficavam indecisos para classificá-lo em qualquer escola; a maioria concluiu enfileirá-lo no Parnasianismo, mas era tão vibrante e capitosa a poesia de Martins Fontes que a inspiração trasvasava espumejante da forma rígida, e como diria Eça de Queiroz "uma forma soberba de plasticidade e de vida, que ao mesmo tempo lembrava o verso marmóreo de Leconte de Lisle com um sangue mais quente nas veias do mármore, e a nervosidade intensa de Baudelaire vibrando com mais norma e cadência".

O parnasianismo lhe era, assim, acanhado para conter os arrebatamentos da sua cálida e rubra imaginação, porque era imenso, quase infinito, o mundo da sua fantasia e do seu sentimento. Martins Fontes, esteta primoroso, ora épico, ora lírico, encerrava em si completa organização literária e percorreu todos os setores da arte. Vimos, depois, surgir as poesias de Vulcão, Volúpia, A Fada Bombom, Rosicler, Escarlate, Céu Verde, constituindo o coração incendiado, concupiscente, galanteador, cavalheiresco, demoníaco e patriótico.

Na solidão e no sonho, afastado do mundo, social, ambicionava, em ardentes anseios, reunir toda a obra poética em determinada ordem de assuntos, descuidando-se do arranjo da obra em prosa, novelas, teatro, conferências, umas prontas, outras em esboço.

Noutro volume, reuniu muitas das melhores produções, refundiu muitas das maravilhas que são pequenas obras-primas da literatura: Schaharazade; A Flauta Encantada; Sombra, Silêncio e Sonho; Paulistânia; Nos Rosais das Estrelas; Guanabara. E deu-nos mais: Cançõoes do meu Vergel, Canção de Ariel, Tataoca-Cerâmica paulista (poesias inéditas em poder de Paim que as ilustraria em azulejos), Indaiá, Nos Jardins de Augusto Comte, Calendário Positivista – esta, a última obra inacabada que comparamos, em perfeição, às filigranas e rosáceas de pedra das capelas imperfeitas do Mosteiro da Batalha, em Portugal, que assim ficaram porque o artista-escultor, antes de as terminar, morreu.

Martins Fontes era um dos maiores poetas do Brasil, um dos últimos abencerragens da gloriosa geração de Olavo Bilac, digno de ter ostentado a coroa e louros de príncipe dos poetas brasileiros, com o qual quiseram consagrá-lo. Martins Fontes proclamou a sua profissão de fé, como Cavaleiro da Arte, e seguiu o caminho do Mestre, Olavo Bilac.

Os sofredores de amarguras e de desilusões da crença, desgostosos com as modernas aspirações e a atração do mundanismo, se refugiarão no Templo da Arte, no Partenão, onde, como proletários trabalharão a palavra e a estrofe para a criação de epopeias. E entoando hinos à Arte, o poeta será sóbrio e terso, puro e claro, simples e correntio, sem demonstrar esforço, para atingir a perfeição, sob a inspiração da forma.

Martins Fontes nos surgia a cada momento com novos motivos de arte. O grande artista criava incessantemente, como terra fecunda, revolvendo temas imprevistos. Do cérebro, trasvasavam ideias de ouro, buriladas, sob forma inquebrantável e brilhante. Se a forma parecia demasiada preocupação, a sacrificar a ideia, conformando-a na rigidez do dogma parnasiano, não se explicaria sem ela a perfeição da Arte imortal. O diamante em bruto, negro, amorfo, vale pela matéria preciosa, mas se o burilarmos conforme a técnica, rutilará em ofuscante deslumbramento, como as ideias sublimes.

Para produzi-las, quase sem esforço e sempre de improviso, Martins Fontes não tinha longos ócios porque cuidava de numerosa clínica em vários hospitais e sociedades beneficentes, e assim não havia possibilidade dum ente humano se entregar ao delicado trabalho de filigranar versos com o ouro das ideias.

Martins Fontes, entretanto, conseguia milagres. Era excepcional no método, impondo-o a tudo que o rodeava. A horas certas, como se fossem determinadas por um regimento interno, sacando constantemente o relógio do bolsinho da cintura das calças, o médico era infalível e pontual, a pé ou de automóvel, de cabeça ao léu e vergada ao chão, e durante o trajeto, ainda que fosse acompanhado, sem interromper qualquer conversa, o cérebro destilava poesia como o alambique a essência mais fina. Parava. Tomava notas num pedaço de papel sempre de reserva nos bolsos, ou nas costas da conta do florista, ou no caderno das receitas.

Compunha por este incômodo processo de trabalhar muitos dos seus livros, cujos rascunhos passava a limpo para, em casa, dar-lhe a forma definitiva, escolhendo os domingos e feriados, seus dias úteis para a Arte, enquanto toda a gente se entretinha no futebol ou no cinema.

Martins Fontes, apossado do assunto que o apaixonava em exaltações vibrantes na ocasião, de que falava a todos os amigos, durante dias, semanas, meses seguidos, recolhia-se ao gabinete de trabalho e dispunha os materiais para a concepção da poesia, com o mesmo cuidado e carinho com que as crianças dispõem os brinquedos, tirando-os das gavetas, das malas, das caixas, tudo em desordem, para depois arquitetar o divertimento.

Fazer versos eram os brinquedos de Martins Fontes, cujos momentos considerava os mais felizes da sua vida. Ele corroborava, desta forma, o princípio de que a arte, no significado mais restrito de objeto inútil, é o esforço para criar beleza, ponderando-a um divertimento do espírito, no sentido de coadjuvar a tendência do homem para a ação desinteressada, um divertimento onde o espírito joga com imagens e sentimentos sem interesse.

Para o artista, a criação artística é um jogo do espírito, mais delicado e complexo e quase imaterial, servindo-se tão somente dos objetos para sugerir sentimentos e imagens, em cuja atividade funcionam, em colaboração íntima, a percepção, a contemplação, a simpatia, enfim a imaginação criadora.

Em Martins Fontes era intensa, emocionante, a criação de qualquer obra literária; provocava-lhe altas temperaturas; o coração lhe batia mais forte; cada verso saía improvisado, repetindo-o continuamente em voz alta; acumulavam-se, em tumulto, versos e estrofes; muitas vezes suspendia, em meio, o trabalho, chamado pelos deveres profissionais, e ainda assim continuava-o na rua, nos consultórios, mesmo em assistência aos clientes; e no automóvel, em marcha, falando sempre, às vezes cantando a modinha em voga, cumprimentando, às cegas, com o braço estendido fora da portinhola, toda a gente que passasse, em largos acenos, no receio de qualquer descortesia com amigos e camaradas, enquanto andava abstrato, em constantes sobreavisos ao motorista que tivesse cuidado em não atropelar qualquer pessoa, na rua, na corrida acelerada para se chegar à hora certa.

Por causa do seu temperamento dispersivo, tumultuário, ardentíssimo, assaltado por contínuas e múltiplas tentações, Martins Fontes sempre teve a existência agitada, polidividida. Além deste feitio, a vida material continuamente o absorveu por considerar sagrados os seus deveres familiares e gostar requintadamente das coisas luxuosas. Matou-se a trabalhar. Ninguém foi mais abelha o que ele.

Em contraste, porém, com este viver alucinante, ele tinha a crença – e isto era o resultado duma velha fé – de que a Arte é a mais exigente das amantes que quer para ela tudo ou nada, obrigando a uma absoluta paz de consciência, indispensável para a abstração, para a elaboração e para a execução.

Martins Fontes acreditava que se existia realmente o dom, a Beleza era o resultado de trabalhos aprimorantes, muito lentos. Também confessava que os poetas jamais deixarão de fazer versos todos os dias. O artista não pode passar longos períodos afastado do seu ofício, e devia se lembrar de que Vítor Hugo, Todo Poderoso, fazia, como exercício, oitenta versos, diariamente. Martins Fontes possuía igual e espantosa facilidade em produzir versos, para não perder o hábito e para que a mão não se enferrujasse.

A inteligência dos artistas está nas mãos. Uma bela ideia todos poderão tê-la, mas vesti-la muito poucos. Travam-se lutas renhidas entre o aéreo do sonho e o concreto da expressão. Plasmar é divinizar. Quem idealiza, faz música, mentalmente; quem escreve essa música, cria mundos, esculpe, encofra, entesoura, perpetua, deifica. A poesia é nuvem mas o verso é flor.

E Martins Fontes se gabava de escrever em verso como nós todos escrevemos e falamos em prosa. A metrificação, depois de escolher o gênero de poesia para o tema de que rascunhava as suas notas sobre assuntos ou impressões de leitura ou de fatos humanos, processava-se ao mesmo tempo que descobria as rimas, quase sempre ricas, raras e variadas. Assim, as frases desfilavam sobre o papel lenta e cuidadosamente, ora na ordem direta, ora na inversa quando o metro, a cesura ou a rima impunham desvios ao seu estilo claro e sóbrio, ou quando a pintura do quadro ou o perfil do retrato exigia cores e sons adequados, onomatopaicos, que exprimissem com exatidão a realidade.

Riscava aquilo que escrevia à máquina, com letras dificultosas, cujas emendas ainda eram retificadas. Se não encontrava a palavra própria, ensaiava outras frases pelas margens do papel que retocava até que ficassem a seu contento, exultando pela descoberta do termo ou da ideia exata. Depois, sentia-se sem coragem para copiar aquela algaravia de letras, palavras, frases, amontoadas, embrulhadas. Alguém, carinhosamente, passava muito tempo nesse paciente mister de trasladar a limpo a joia literária que acabava de sair da oficina do ourives.

A concepção da poesia era penosa, o trabalho criador do poeta fatigava o cérebro; mas o lavor do artista, a autocrítica da contextura, o exame cauteloso da ideia na formação harmônica de todas as peças, a leitura em voz alta para que os ouvidos anotassem as dissonâncias, os hiatos, as cacofonias – alegravam-no, distraíam-no, durante longuíssimas horas.

Era impossível trabalhar-se mais. Esgotava as forças físicas. Exauria a imaginação a fazer coisas sobrenaturais de várias formas, em diversos ramos. Então, reconhecia-se num poeta proletário, fiel servidor da Arte. Quando me admirava de tanta fertilidade, recitava:

Vivemos a cumprir nosso fadário,
Como as abelhas, fabricando a cera,
Como as abelhas, fabricando o meu
.

No entanto, Martins Fontes não fazia versos quando o preocupavam dores morais, desgostos que lhe tiravam o sono. Suportava as crises que muitas vezes não vencia e as suavizava chorando. Considerava que, para fazer versos, era preciso que as amarguras não o torturassem. A Arte, como culto religioso, se realiza num estado beatífico de Graça.

Na composição do verso, adequando a frase à métrica, preocupavam a Martins Fontes o ritmo e a rima. Martins Fontes amava nos versos a surdina que lhe lembrava os tons de opala do luar em noites de neblina, as morte-cores dum vitral. Ele queria que o verso em cada som tintinabulasse, musicalizando a fase, e que, nos alexandrinos amplos e sonoros, predominasse o semitom duma vogal e a rima não fosse estrídula, tornando o verso simples.

O verso é a concha que repete em ecos cristalinos a voz do vendaval ou um véu ondulante evocando a imagem ideal "como a canção do rei de Tule". A rima, contendo dois sentimentos, a imagem da saudade e a da esperança, engasta sucessões de sonâncias rítmicas que surgem inconscientemente. Verifica-se, ao compor, que as cadências ou vozes imprevistas surgem, chamadas predileções da música. O verso é eco. A ciência métrica nos demonstra que a harmonia é nebulosa e etérea. Os críticos não observam o segredo sutil da rima.

Martins Fontes se utilizava de todos os metros, desde os elementares de uma a sete sílabas, onde a cesura é livre, até os compostos em versos de oito a catorze sílabas, em que a mobilidade dos acentos predominantes, com palavras sonoras e expressivas, forma a base essencial dos mistérios da música no verso.

Martins Fontes respeitava as regras das cesuras oficiais, as mesmas que sempre foram cumpridas por clássicos, românticos e simbolistas, conquanto estes últimos se descuidassem do valor dos outros acentos e das palavras de efeito rítmico, tornando os versos monótonos e às vezes duros que mais valiam pela grandeza do assunto ou pela beleza do pensamento. Martins Fontes conhecia os segredos das meias tintas e dos sons sutis.

Para a tradução fiel da ideia, com o fim de sugeri-a, em toda a sua intensidade, ele distribuía os acentos da escala ascendente ou descendente ou intercalada das vogais, com palavras próprias ou com vocábulos de valor onomatopaico que mehor a pintassem ou a musicassem. Nas palavras e nas frases que burilava, fazia o verso radiar como crisoberilo em que se reproduz a harmonia na luz.

Na contagem das sílabas poéticas, Martins Fontes tinha extremo cuidado com a sinalefa, pela qual as vogais brandas, unidas ou contíguas, se absorvem numa única sílaba, exceto quando, no encontro, a vogal anterior ou posterior fosse aguda. Esse é o escolho maior da versificação, onde tantos poetas encalham e naufragam.

Para vencer esta dificuldade, Martins Fontes aconselhava o exercício da contagem de sílabas nos versos de Bocage, o mestre incomparável e genial nessa arte, e a educação do ouvido na diferenciação dos sons, agudos e graves, predominantes ou absorvíveis. Martins Fontes preferia,para as poesias de poemas descritivos e de teses filosóficas, os versos decassilábicos e dodecassilábicos, porque permitem maior variedade de acentos, enquanto os outros são mais próprios para efeitos melódicos ou musicais, exigindo com rigor, somente as cesuras obrigatórias da métrica.

O decassílabo, chamado verso heroico, com cesura invariável na sexta sílaba, como eixo do decassílabo clássico, possui outras cesuras, não contando a última sílaba poéticas, como a dos outros metros, que recai sempre no acento agudo, grave ou esdrúxulo da final palavra do verso. Há o decassílabo sáfico com cesuras na quarta, oitava e décima sílaba, e o decassílabo francês com cesuras na quinta e décima sílaba.

O dodecassílabo era o verso preferido dos parnasianos, cujo uso na língua portuguesa começou depois de Bocage. Na França, já era bastante conhecido desde o século XII, quando apareceu o Poema de Alexandre o Grande, composto por Lambers Licars e continuado pelo trovador normando Alexandre de Bernay. Chamaram-lhe alexandrino, por antonomásia, e somente o empregaram na proclamação das grandes ideias, na descrição dos assuntos majestosos e de acontecimentos épicos.

O alexandrino contém muitas cesuras: na sexta sílaba poética que divide o verso em duas partes distintas, ou sejam dois hexassílabos, devendo o primeiro terminar em agudo ou o segundo principiar por vogal; na quarta e na oitava ou em três quadrissilabos, e daí por diante em trissílabos e bissílabos.

Martins Fontes, entretanto, usava em menor percentagem os octossílabos, os encassílabos e os endecassílabos, que serviam para os seus versos cantantes e cantáveis. Como capricho de métrica, fez versos de catorze sílabas com acentos na quarta, nona e décima quarta sílaba, nas poesias Nutrisco et extinguo em Sol das Almas, e A barra dos Coqueiros em Céu Verde.

Com o movimento das sílabas tônicas, claras, sonoras, belas, nas cesuras, Martins Fontes conseguiu o ritmo admirável das suas poesias, sabendo, nos versos de humorismo ou poesia cômica, aplicar palavras agudas, e nas composições de expressão e ressonância, ressaltar o valor acústico dos vocábulos exdrúxulos.

A poesia cômica, obedecendo à técnica parnasiana, pindaricômica, molieresca, ronsardizante, é aquela que faz sorrir, porque encerra na perfeição funambulesca, num dado poema de forma fixa, um imprevisto qualquer, explicava Martins Fontes.

Mais. Às vezes, é a rima inédita, mirabolante; outras vezes, uma palavra rebarbativa, mas a propósito, insubstituível; um dito picaresco, exato, original, vivido pelo colorido; pequenos efeitos, de grande êxito, dão à poesia cômica seu prestígio passageiro, cintilante como fugaz raio de sol em asa de libélula auritrêmula.

Poesia de circunstância, burilada sobre fatos diários, mas aconselhada pelo grande Goethe, adotada por ele, segundo Ekermann: "O mundo é tão rico, a vida tão variada, que nunca faltarão assuntos poéticos". Esse ritmo de Martins Fontes atingia as estrofes na sucessão das ideias, cadenciado pela pontuação exímia e pela discreta passagem do pensamento, de um verso para outro, num encadeamento imperceptível, sem abusos prejudiciais.

A rima, dizia Martins Fontes, ajuda os poetas a completar o ritmo dos versos. Nem se pode compreender a poesia sem rima, quando também não seja toante, desde que a prosa, em nossos dias, quase se aproxima da cadência do verso brando e livre ou polifórmico que os simbolistas e futuristas repuseram em voga, a ponto de podermos formar versos e estrofes com a prosa dos escritores, sem lhes alterar uma vírgula.

As rimas consoantes e ricas foram as mais usadas por Martins Fontes, que ainda as fiscalizava para tentar evitar rima de substantivo com substantivo, advérbio com advérbio, substantivos com seus derivados, verbos conjugados nos mesmos tempos, ou as rimas homófonas e fracas, com o excessivo uso dos gerúndios.

Nas estrofes, Martins Fontes variava muito a colocação das rimas, ora emparelhadas, ora cruzadas, ora interpoladas, e, em raras poesias, encadeadas, muito em moda no romantismo, conforme utilizasse o dístico, o terceto, a quadra, a quintilha, a sextilha, a oitava e a décima, nos gêneros literários da sua predileção, como sejam, entre outros, triolés, rondós, pantuns, canto real, o poema descritivo, a canção, o fado, elegias, serenatas, odes, epístolas, madrigais, sobressaindo-se em maior quantidade o soneto, a balada e o rondel.

A forma de fazer o soneto perfeito, dizia Martins Fontes, era variar as sílabas finais, no cromatismo das vogais, assim como queria que a balada fosse límpida e clássica porque adorava a frase cinzelada, mesmo no humorismo.

Na Idade Média, os copistas ilustravam os Livros de Horas, transcrevendo canções. Hoje os poetas, como não têm editores, escrevem à mão os seus Livros de Amor, compondo sonetos como quem borda ou rendilha fios. E parecendo uma criança nos seus jogos, Martins Fontes rimava rondéis e sonetos que, pelo sonho esperançoso, eram o eco de vários corações.

Ele achava belo o cantar dos trovadores da Provença. Considerava os versos como flores que têm o perfume das rosas. Conseguir-se-iam prodígios musicais, em vários metros e com diversos coloridos, se, alternando-se, consonassem os semitons sonoros das vogais.

As melhores estrofes são as que parecem um suspiro, um olhar, um sorriso, uma prece, porque a poesia é o nosso trigo espiritual. E o mal é querer perdurar. Na vida, tudo passa rapidamente depois de mutações vertiginosas. Na arte, tentamos conseguir a maravilha imortal de mil formas, mas a sorte efêmera e vária humilha o poeta, tornando os versos irmãos das falenas.

Assim foram as rimas de Martins Fontes. Cantavam em obediência às leis supremas, como os rosais dão flor e tem ondas o mar. O dever do poeta, na vida, transitória, é iludir consolando. Se ele sonhou ser ourives foi para enjoiar o espírito das mulheres amadas, cultivando madrigais, ofertando-lhes rondéis e sonetos feitos de prata fina e, apurando o buril, bordar baladas de ouro ou rondós de platina que lhes servissem de anéis.

Tal como o passarinho deixa de cantar quando se lhe parte uma asa, assim os poetas que transformam a tortura em música, como as cigarras, emudecem quando os tolhem na sua liberdade, conquanto estejam encarcerados num gabinete de trabalho, no estudo profundo, altas horas da noite, cercados de livros, entre abismais cogitações, projetando o seu calrão pelas trevas densas da noite sobre os mares revoltos, para guiar os que andam perdidos e desorientados.

A iluminura deste quadro impressionava e dava prazer a Martins Fontes quando se encontrava no mesmo estado de transubstanciação. Faz-nos lembrar a história da cigarra e da formiga, como símbolo da profissão de fé do Poeta. A cigarra, na última tarde do outono, pobre e esfomeada, com a viola de cordas partidas bateu à porta da formiga a pedir-lhe pousada e alimento. A formiga, muito acusto, foi atender e, vendo a cigarra, indagou sobre o que fez no estio. Cantou as maravilhas do mundo para alegrar a humanidade. A formiga aconselhou, com prudência, que deixasse de tais maluquices de poeta, cantando o amor e o ideal, poesia e sonho que nada valem na vida.

No entanto, a formiga podia lhe emprestar dinheiro, desde que desse garantias, pagando os juritos! Como nada conseguisse de quem somente sabe cantar, a formiga disse: "Se cantaste, vagabunda, no estio, dança agora". Fechou-lhe a porta. E a cigarra, com fome e frio, caiu quase morta em terra. Na agonia, pensou no seu desgraçado destino, lembrou o passado alegre, considerou sobre o usurarismo e inutilidade dos ricos.

O inverno dava à terra estranho aspecto de cemitério. Dona Formiga morava naquelas paragens sozinha, sem afeto de ninguém, em casebre miserável, com o cofre cheio de libras. Vivia triste, ao abandono, e pensava no seu infeliz fim. Fora, o vento gélido uivava na noite negra. A formiga se lembrou da cigarra e do crime que praticou enxotando-a de casa quando lhe pediu ajuda. Pôs-se a rezar pedindo perdão a Deus, que lho concederia ressuscitando a cigarra que, então, voltou a cantar para alegria da terra, onde o sol raiou de novo. A natureza imensa louvava a vida em hosanas à mocidade, em hinos à alegria. Dona Formiga sentiu a inutilidade e a ilusão da fortuna, porque a verdade está no sonho, e a poesia é tão necessária como o pão.