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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-II-05)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 150 a 153):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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II – CAVALEIRO DA ARTE

5

Aníbal Teófilo publicou, para distribuição entre os amigos íntimos, um único livro de versos – Rimas -, dos quais se celebrizou o soneto "A Cegonha", considerado pelos críticos um dos melhores da poesia nacional e mesmo da língua portuguesa. Deixou inédito um poema lírico – Branca Flôr – no estilo clássico dos romances medievais.

Na tarde do dia dezenove de junho de 1915, sábado, realizava-se no salão nobre do Jornal do Comercio a Hora Literária, sob os auspícios da Sociedade de Homens de Letras. Todos os poetas e escritores da época tomaram parte no vesperal. Aníbal Teófilo recitou a sua poesia inédita Ausente. O salão se encontrava repleto de senhoras, de jornalistas, e muitos admiradores e cultores da literatura. Jamais a Sociedade dos Homens de Letras lograra tão brilhante e inolvidável triunfo.

Sob aplausos frenéticos e muitas exclamações de entusiasmo, o vesperal findou entre sorrisos e abraços. Os homens de letras que tomaram parte naquela feliz Hora Literária, para comemorarem esse dia venturoso da literatura brasileira, formaram, no vestíbulo do Jornal, um grupo que fotografaram, e em que ficaram sentados: Heitor Lima, Goulart de Andrade, Luis Edmundo, Olavo Bilac, Ciro Costa, Augusto de Lima e Martins Fontes; e de pé: Olegário Mariano, Bastos Tigre, Francisco Sarandy, Emílio de Menezes, Oscar Lopes, Sebastião Sampaio, Aníbal Teófilo, Humberto de Campos, Gregório da Fonseca e Leal de Sousa.

Dispuseram-se todos a sair, pois anoitecia. Após três minutos de disperso o grupo, ouviram-se estampidos de tiros de revólver que ressoaram no saguão do Jornal. Todos correram, e viram: tombado de bruços no chão o poeta Aníbal Teófilo; do lado da rua, ainda na porta, empunhando o revólver o assassino: o dr. Gilberto Amado. Momentos depois desta horrorosa e sanguinária cena, Aníbal Teófilo, amparado pelos amigos, falecia em virtude da gravidade dos ferimentos.

Logo que terminaram as formalidades legais e policiais, o corpo do inditoso Poeta e secretário do Teatro Municipal foi levado para a sede da Sociedade Rio Grandense, à Avenida Central, de onde, no domingo, saiu o féretro.

Na capela fúnebre, cercado de flores e coroas, o caixão funerário onde colocaram o corpo de Aníbal Teófilo, era lacrimosamente contemplado, em silêncio, por amigos, pela família e parentes e pelos camaradas da Roda Literária. Alta noite, uma estranha mulher, embuçada e romanesca, toda de preto e fantasmática, apareceu suavemente, trazendo cravos brancos na mão. Chegou, sem medo, junto ao caixão, soluçou e beijou a face, a boa e as mãos de Aníbal Teófilo. Nenhum dos amigos de Aníbal a conhecia, nem tentou descobrir a bela desconhecida, em respeito à dor ou à paixão lancinante. Depois, como sombra, imprecando, afastou-se, cobriu o rosto e desapareceu, para sempre, na vida. Era um gesto de gratidão por quem sacrificou, em plena mocidade, um grande e torturante amor, de que foi capaz o Poeta e Cavaleiro Aníbal Teófilo pela mulher amada! Seria Ela?!

No instante trágico de fechar-se o caixão de Aníbal Teófilo, todos os poetas da Roda, sem terem nada combinado e fiéis a um juramento entre eles, tiraram dos bolsos os frascos de perfume Ideal de Houbigant, e os derramaram no peito, sobre o coração inanimado de Aníbal Teófilo. O primeiro foi Olavo Bilac. Cumpria-se assim a promessa. No Rio de Janeiro, quando a imprensa contou este belo episódio, esgotou-se o estoque de Ideal de Houbigant.

Aníbal Teófilo foi, disse Martins Fontes, fora do seu tempo e do seu meio, um puro espécime de Cavaleiro. Don Frisol, como lhe chamava Martins Fontes, era a lealdade, a dedicação, o arrojo, a intuição inspirada, a inteligência rutilante e por vezes genial, a piedade, a valentia, o tipo do homem incapaz de ter um pensamento que não pudesse tornar público, porque vivia às claras; de ter um sentimento que o não sobre-excelenciasse, porque vivia para outrem. Aníbal era altivo, belo como um pajem espanhol. A sua Torre de Marfim se abria para o sol e para o sonho. Ao bem-querido Irmão de Ricardo Gonçalves, os que o conheceram, em coro, no momento de baixar o caixão à sepultura, entoaram o refrão da "Balada Fraternal" de Oscar Lopes: Aníbal, nós não te esqueceremos!

Aníbal Teófilo era bom e brilhante, alegre, engraçadíssimo, guapo, galhardo, garboso, galante, ciranesco, um caricaturista verbal admirabilíssimo. Ninguém arremedava como ele, descobria, física ou moralmente, o aleijão de alguém. Há disparates de Aníbal, infantilidades, maluquices impagáveis, disse Martins Fontes.

Certa noite, ao luar, Martins Fontes e Aníbal Teófilo faziam seus passeios habituais pelos arredores do Rio de Janeiro. Aníbal Teófilo recitava, desfolhava rimas em louvor da bravura, do brio e da galanteria, mestre impecável da gaia-ciência, do raro trovar. Martins Fontes, transfigurado pela beleza da paisagem noturna e pela voz encantadora de Aníbal, de acentos graves e retumbantes, viu no feltro de Aníbal Teófilo flutuar uma pluma, o seu traje se transformar em gabão de veludo e seda de herói de Velasquez, transparecendo através da capa solta, a folgar ao vento, e, em vez da bengala de junco da Índia que lhe ofertara de volta da França, luzir um florete, florido nos copos por um abridor toledano, pendente, à direita, soerguendo o manto…

Doutra vez, em pleno dia de sol resplendoroso, em novembro, de manhã, ambos atravessaram o parque da residência senhorial de Oscar Lopes, em São Clemente, distraídos e encantados, quando viram uma velha mangueira, que através da grossura do caule musculoso, deixava transudar a seiva que se pulverizava em gotículas fúlgidas, em piscas de ouro vivo, e que bailavam no ar como arco-íris minúsculos. Martins Fontes ia romper em catadupa de louvores, mas Aníbal Teófilo, assombrado, pálido, levou o dedo indicador à boca e sussurrou-lhe aos ouvidos estas palavras:

- Silêncio. A árvore sonha. Chora, sonhando.

Martins Fontes jurou, na vida inteira, cantar a grandeza e batalhar pela glória de Dom Frisol. Quando, à noite, as estrelas surgiam e iluminavam o céu imenso, Martins Fontes ouvia, do Azul, anunciar, entre músicas, o resplendor de uma Ressurreição. Ele bem merecia aquela dedicatória ardorosa num retrato de mulher formosíssima que foi capaz, em dez anos, de demonstrar a mais santa cordura e uma dedicação total, integral, em que não havia artifício: - "a quem sempre me quis, querendo-me somente, a quem tudo me deu e a quem nunca dei nada".

Todos os anos, a dezenove de junho, no saguão do Jornal do Comércio, contava Martins Fontes, aparecia, sem que nunca se soubesse quem o enviava, um ramo de rosas brancas, tendo, numa fita, em letras de ouro, a seguinte legenda: "Nesta data, aqui foi assassinado, pelas costas, o Poeta Aníbal Teófilo". Ou aquela mulher que apareceu de madrugada e desapareceu como sombra na capela mortuária, ou a que dedicou o retrato com palavras emocionantes, ambas anônimas e misteriosas, ou outras mulheres que amaram e admiraram o grande poeta Aníbal Teófilo, motivaram a bênção de Martins Fontes, pela gratidão que as rosas demonstravam dessas mulheres piedosas que não esqueceram o Irmão querido, que não permitiram que o sonho se desfizesse, e que assim praticaram a saudade.