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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-04)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 44 a 57):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

4

Ela era o ideal da graça e da beleza: a boca parecia corola rósea, donde se evola a música; o andar era quase aéreo, cadenciado, e deslizava como véu ondulando à carícia do vento; o corpo era de gaza; o perfil era o dum lírio, esbelto e loiro; enfim, fazia pensar nos artistas ourives; muitas vezes, ela lhe surgia em sonhos, vestida à Pompadour, dançando um minueto nos jardins de Versalhes. Ela teve o desejo de se debruçar sobre o seu coração e viveu um minuto nas suas mãos. Murchou ao calor dos seus lábios. Depois de aspirar-lhe o perfume ou dar-lhe um narciso, um beijo, ele a esqueceu.

Ela lhe perdoava porque durante um minuto ele foi dela. Assim o coração da amante se consolava, dizendo que quem nunca amou nunca viveu. Também ele nunca a desejou, somente a amou. Sentia remorsos de jamais beijá-la nem apertá-la ao coração, conquanto a adorasse, sem a querer, sendo sagrado este sentimento.

Os seus queixumes eram cantos de saudade a um amor antigo, incompreendido, daquela que talvez morresse ou nunca existisse. Ninguém a compreendia. Ele ansiava, cego pela paixão duma mulher sonhada, louco de amor, conquistar, na ascensão da escada feita dos corações das outras mulheres, a imagem modelar, o impossível, o inatingível, o ideal da perfeição. Cria achá-la na Terra. Esperava um dia contemplar o esplendor da poesia na carne da mulher. E continuava nesse desvairamento de possuir as mulheres que enganava, cujos beijos não lhe aplacavam o desejo. Conquanto previsse futuro cheio de martírio, ele conseguiria o símbolo imortal da beleza impecável que o inspiraria na composição dos versos, celebrando a Arte pura. Parecia-lhe ouvir a voz amada que lhe murmurava:

- Galgas o céu inutilmente, não acharás a alma de quem desejas. Em tempo algum alcançarás a visão dos teus sonhos desvairados, porque ela não existe, amaldiçoo-te porque, ao prazer do meu beijo, escolhes a tortura de amar a todas as mulheres.

Que importava essa voz que lhe ecoava na consciência! Continuaria a se enlevar com a beleza da boca das mulheres porque lhe inspiravam sonhos, e quando essa linda boca falava ou cantava, expressando as palavras – mamãe, saudade – pareciam dar beijos, despetalando as sílabas com graça e sorriso, que o Poeta comparava ao azul suave e raro dos velhos tons. A mão das mulheres é bela porque afaga e abençoa, sintetizando a alma da raça.

Mas boca e mão, sendo formosas, são terrenas. Não se comparam aos olhos que dão a ilusão da eternidade, do infinito, e são a melhor e maior beleza que existe em todo o mundo. O olhar traduz tudo que abrange o pensamento, desde o grão de areia ao céu. Os olhos mortos, muitas vezes, guardam a última imagem da vida que neles se reflete além da Morte. Quando ele, Poeta, morresse, ver-se-ia, nos seus olhos apagados, o coração, ou dois olhos amados refulgindo.

Esta mulher a quem o Poeta amava, sem esquecer que ela era um lírio do céu, possuía perfume raro de tanta graça que, sendo flor, era mulher, e ao fechar os olhos surgia-lhe com olhar azul. As suas orelhas eram comparáveis a conchas de tons de opala. A flor do espírito, na corola do corpo, concretizou a Perfeição do Sonho, possuía a Piedade, o Amor constante e o perfume. A alma esplandecia através dos seus refolhos mais íntimos e assim ele via o olhar mais azul, o sorriso melhor e o coração mais doce da amante.

Há mulheres que, se são belas quando vestidas, são a própria beleza quando nuas. A lua apareceu de dia, ao sol, e pareceu a este uma atriz que, em vestido de gala, surgisse em cena. Exalta-se a perfeição divina da mulher formosa, de olhar fascinante, mais bela do que a estrela e do que a rosa, excedendo-as no perfume e no brilho, e, mais belas do que elas, no seu ser se condensa e se resume o idealismo, no qual se maravilha, louvando-se a boca que, ao rir-se, apaixona e seduz, apresentando-se como dupla cereja.

Os olhos da mulher formosa, quando o fitavam, guiavam-lhe os passos pela vida. Ele amava esses olhos que pareciam dois astros ou dois céus fulgindo. Sem os seus olhos, andaria cego na solidão dos mares. Por eles viu a luz do céu, e deles se originava o sol de amor que, na terra, o conduzia.

Ela era tão linda e pura que não se atrevia a lhe tocar nem de leve, como se fosse uma flor do trevo. Ele amava a formosura dela, seu enlevo constante, afastando de si maus pensamentos. A sua devoção era uma redoma e dela só aspiraria o perfume, com cautela. Entre o perfume e o gosto do pecado, sabendo que ela era pomo, não se esquecia que ela era somente flor. A mocidade cheira a flores.

Ela era uma roseira em flor, ao sol. Do seu corpo trescalava um perfume que seduzia toda a gente, e que ele pressentia. Se ele andava perfumado era porque o seu perfume vinha dela. Os olhos dela curavam porque tinham a virtude dos filtros e sanavam todas as dores. Os seus olhos eram espelhos da alma, da pureza, do amor, do bom conselho. Ele ressuscitaria um dia pela verde esperança dos seus olhos.

Os semitons de sol, de ouro e âmbar dos seus cabelos tinham tanto flavor para os olhos que, fechados, ele continuava a vê-los. Depois do banho, os cabelos, enovelados e revoltos, faziam pensar que a água os ia acender. A sua cabeleira parecia coroa que se amoldava, emaranhava e se amachucava, encastoada na fronte, onde cintilava, dourejando, a nuca.

A beleza e a bondade que lhe encantavam o rosto, queriam que o madrigal fosse inventado. Ao vê-la, sentia-se que ela era um diamante lirial, agradando a luz dos seus olhos de turquesa e a alvura da sua mocidade. Nos olhos negros, vívidos, ele via um líquido veludo de que nunca ouviu louvar. Na sua cristalinidade, como orvalho, ele sentia a doçura do beijo, notava, na escuridão, a aurora fulgindo. Quando ele os contemplava, sentia que os olhos exprimiam a sedução e o encanto da treva rutilando e o sorriso da lágrima. E a lágrima caía do coração justo, como gota de orvalho num gosto de madona. Essa lágrima enternecia porque significava a mágoa íntima. Da pálpebra, trêmula, cai, desce, desliza como um lírio quando chora.

Depois das chuvas, como depois do pranto, clareia-se o céu e há claridades consoladoras no amor. Choveu. Ela chorou. Pois formou-se no espaço um arco-íris que no seu rosto era um sorriso. E ela chorou, em silêncio, por sua causa, e o pranto lhe molhou o lenço. Beijando esse linho perfumado e também chorando, pensava que entre ambos não haveria contrastes e o seu suplício era igual.

Na vida são precisos os simulacros dos preconceitos, mas como o pranto não contém venenos, ambos confundiam as lágrimas. Depois de enxugar as lágrimas, ela abriu os grandes olhos míopes, pestanudos, de veludo líquido, em contínuo esforço de graduação visual que exerciam, sobre os nervos do Poeta, um poder satânico e, em surdina, faziam vibrar-lhe a harpa da carne, o teclado epidérmico.

Pouco a pouco, a volubilidade o dominaria em todos os sentidos. Desde a contemplação da mulher ideal às sensações do amor, percorria longa estrada entre visões de beleza indescritíveis. A amante é a obcecação torturadora. Tudo nela serviu de motivo ao arrebatamento da paixão, dos pés à cabeça, mas é na boca, nos lábios da amante que o Cavaleiro do Amor fixava os olhos gulosos, porque era ali a sede do Beijo.

A boca é sem par. Não há flor nem rosa, por mais bela, mais fina e aromal, fresca e linda, que se lhe iguale. Qualquer imagem, embora perfeita, amesquinha-se ante a doçura de cetim daquela boca que é única, a mais pura de todas, a de lábios mais líricos e sorridentes. Ele ansiou, a vida inteira, no êxtase de amor, ao realizar o sonho, "sentir a dupla perfeição do beijo".

Aos vinte anos, o seu beijo era um lírio escarlate, tão rutilante que lembrava um clarim ressoando depois do triunfo em combate. Mais tarde, transformou-se em flor cor de rosa, de essência espiritual, em cujas pétalas havia doçuras irradiantes. Ele concluiu que existiam beijos verdes, roxos, amarelos, brancos e simples, e violáceos, que nos desvendam desvelos recônditos. Agora o seu beijo era azul, a cor do Ideal, da esperança e da amplidão do céu, e os simbolismos se fundem nos seus tons, entre os lavacros da Iniciação.

O beijo e o amor devem ser frutos naturais que se colhessem, provando-os como a um vinho de essências embriagantes sem se discriminar se o aroma vem "das mulheres em flor ou da carne das rosas". Ele nunca roubou um beijo que se dá ou se troca, mas que tem sabor diferente quando se furta.

O beijo de amor, longo ou fugidio, é um prazer. Se o coração consente, beija-se a boca e não a face. Não devemos tocar na flor sedutora se se oferece fácil e formosa. Imitando os árabes, amaremos a roseira, olhando a rosa; roubaremos a mulher e não o beijo. O prazer melhor e maior da vida, mais amável que o sonho; a delícia das delícias que causa aos paladares e ouvidos, unindo sentidos e carinhos; a ventura que resume as maravilhas do invisível, tornando a música um perfume, aquilo que o rouxinol pede à rosa – é, incomparavelmente, o beijo! O beijo dado na boca quer dizer volúpia, e nele todos os beijos num só se incandescem no fogo da paixão.

O beijo nos olhos quer dizer perdão e faz esquecer as mágoas provocadas pelo ciúme. O beijo é uma delícia, é como o olhar, o ouvido, o paladar, o olfato, confundindo-se em carícias de pêssego e rosa. A boca, em corola, contém o perfume do sonho e possui a essência da carne.

No beijo tudo se divinizou, mas ninguém louvou "o cristal musical do seu trilado", porque é inefável "ouvir cantar o rouxinol do beijo". Pois o som do beijo, para os amantes adúlteros, enquanto os maridos dormem, parecerá o zumzum de bicho. Desta forma o Poeta aconselhava a que se amasse irrefletidamente, proclamando ao mundo, cego e surdo, o seu amor. Assim, interpretou a paixão humana, escandalosa, entre gritos, condensando o sonho dos sentidos no beijo, e a grandeza do afeto no abraço que Martins Fontes gostava bem apertado, porque fazia o coração rasgar a carne, e cuja potência vital se compara à da serpente que imobiliza, prendendo ao leito.

Ele, que requintava a sensação do espasmo, tornando o amor um sonho e duplicando o instinto, senhor da carne, sentia que o abraço era um beijo do corpo inteiro. Amando, ultraja a criação quem se domina ou se dá em parte. Quem ama, deve amar como louco, ou ser casto, porque a mentira, no Amor, é pecado mortal sem remissão.

Ao calor do amor, esquecemos a amargura do nascimento, porque esse gozo sagrado é indefinível e parece o soluço da convulsão na agonia. A alma se expande. O infinito se condensa no coração, dando ao beijo o regalo do indulto. Conservemos o gosto de certos vinhos e de algumas bocas que se assemelha ao dos morangos das estradas, escondidos entre espinhos. Assim, se um dia Ela o esquecesse, Ele suspiraria e guardaria a lembrança dos seus beijos.

Ele se lembrava do momento em que ela lhe apareceu trêmula e pálida, cândida, cheia de doçura, meio chorosa, e se aproximou quando Ele escrevia versos, dizendo, com receios, que o amava, ambicionando beijos, mas com medo de conhecer o amor. Como a beijasse, feriu-se na rosa que tinha na boca, mas beijando a rosa tocou-lhe no rosto.

Ele imaginava que houvesse amado somente a ela, considerando-a preferida, e lhe dissesse as mesmas palavras. Como não lhe pôde ofertar o seu beijo, expôs-se ao ridículo de a amar imaginariamente.

As rosas são o incentivo para o beijo, porque a carnação das corolas vermelhas ou róseas nos desperta a ideia a boca. A rosa branca nada disso sugere porque parece oferta lunária, cheia de misticismo, como a palidez e a doçura duma Irmã de Caridade, a quem nunca se tocou, porque não se beija o coração de um anjo. Não se precisa olhar para ter a certeza do amor.

Certa vez, uma Irmã de Caridade entrou na enfermaria onde estava e debruçou-se sobre ele que, de olhos fechados, percebeu, imóvel, o seu vulto reclinado a se espelhar no seu peito.

O amor é sempre imaculado, e o pecado é amável quando inspira amor a quem ama. O noivado nos maravilha porque o seu beijo é puro como uma flor viçosa. Tem origem na divindade, cuja essência feminil é a melhor das perfeições. Entre milhares de encantamentos, o Amor, desvirginando os corpos, revirginará os corações.

Martins Fontes, a vida inteira, deu à arte de amar toda a paixão e jamais deixou de louvar os versos de amor dos outros poetas que foram sinceros, mas o amor não se exprime porque é veneno que mata. Em cada crise de febre e arrebatamento, quando acabava, recomeçava. Invocava, então, a Satânia que sabia como ele lhe beijava a boca, ardorosa e inquebrantavelmente, como um possesso. Não se cansava de dizer que se a mulher pecou, nenhum castigo teria. A natureza, bela, é imperfeita, e por isso é boa. A mulher podia pecar sem perigo, acreditassem que ele falava do coração e francamente, portanto como alívio de pesares e dores, devia pecar porque contra as leis naturais só havia um crime – não pecar.

O Cavaleiro do Amor se arrebatava com a volubilidade da amante, cujos momentos de êxtase lhe inspiravam cenas de grande requinte amoroso, em apurada sensação de gozo e delírio. Perpassarão pelos olhos os quadros vivos dos arrebatamentos de amor, em escala variadíssima.

No Livro de Amor, que são quase todos os seus livros de versos, resplandece a mocidade de Martins Fontes, onde se perpetua a perfeição da Mulher, cuja imagem sempre lhe aparecia aos olhos lindamente nua. Como prenda a tantos encantos, ele lhe oferecia a paisagem do Rio de Janeiro ou a da Guanabara, cheia de estrelas, fulgindo no esplendor da noite.

A mulher que ele nunca pudesse amar, apesar de formosa, era, para o amor, um Éden perdido. Os seus lábios murchariam sem nunca ter provado o aroma do beijo. A sua carne sensual, através dos vestidos, deslumbrava-o, e que somente em sonho o seu olhar desvendava. O seu corpo, em nudez invisível, era primavera de amor, paraíso da lenda, "formosa e virginal como um jardim fechado". Eram, assim, verdadeiras explosões de amor, como ardentes declarações de quem viveu e morreu de amor, num insofrido sensualismo.

Ele esperava, na sala, pela amante, a mulher que amava e o fazia sofrer. Eram seis horas e um minuto. A inquietação aumentava na proporção do atraso. São instantes de ansiedade, em que o próprio tic-tac do relógio parecia responder às suas dúvidas. Deveria romper? Não. Amá-lo-ia? Sim. Viria? Vem. Quando? Já. Qualquer rumor o perturbava. A hora que se aproximava, torturava-o, enlouquecia-o. Enquanto ela não aparecia, tentava fumar, beber, cantar, ler, para iludir o sofrimento de esperar. Fazia conjeturas sobre a demora, mas logo inventava palavras ferinas para recriminá-la. Desistia. Não iria magoá-la.

Cheirava um jasmim do cabo, e, calmo, distraía-se a olhar a casa onde morava no Rio de Janeiro, casa de artista, com a sala cheia de recordações da boemia, de estatuetas, gravuras, desenhos, cartazes, retratos, cartões, quadros de pintores célebres, painéis e espelhos.

Sobre a mesa de trabalho, estavam Toqui, gênio araucário; Guécubas, o anjo negro; Deus Trunguludubas, fantoche moderno, rotundo e risonho. Ao seu lado, a biblioteca em estantes de acaju adormecia entre sofás, almofadas e cortinas de seda carmesim. Uma lanterna, acesa noite e dia, velava o busto de Flaubert. Ao fim do corredor, escancarava-se o salão de banho, em mármore azul, onde, nas piscinas, a água fluía, entre avencas e rosas, espalhando essências, evolando vapores deleitosos.

Nesta contemplação da casa, ele devaneava, como o fumo do cigarro, quando ela surgiu por detrás dum reposteiro de damasco, com chapéu, meias de seda, sapatos de verniz e divinamente nua. Nunca se viu mulher tão bonita, a quem se dá o mundo para lhe ouvir bater o pé gritando: - Olá! Caramba! Diós! Viva la gracia!.

Ele a queria porque há muito que não a via. Êxtase. Loucura. Amor. Là fora o crepúsculo, ao vulcânico ardor do verão, esplandecia e sumia-se nas trevas. Com forte paixão, ambos deliravam. O corpo dela requeimava, o coração ardia em lava, efervescente. À hora estival, depois do meio dia, ambos glorificaram o amor, com beijos loucos, anseios voluptuosos, sob o sol em brasa, como se desfolhasse um malmequer que lhe dissesse a ela, ao ouvido, pela última pétala, que ele a queria com fervor, perguntando se ainda duvidaria. De longe, vinha um canto de violino, de serenata ao luar. O delírio continuava e,no final, sob a emoção do "noturno" sutil, do longínquo violino, como balada, ambos choraram de felicidade. Anoitecia…

Não é verdade que somente se ame uma vez na vida, nem que o primeiro amor é o maior amor. Isto pensou o Cavaleiro do Amor durante o intervalo do seu idílio. Pode-se amar com sinceridade mais de uma mulher. O Poeta confessava a si próprio ter amado dezenas de vezes, com o mesmo entusiasmo. Desde o primeiro amor, até a morte, cada paixão foi cada vez mais violenta. Há quem diga que um amor causa dissabores e dois nem um. Mas os amores do poeta foram sempre diferentes, como os seres e as coisas da Natureza, onde certos amores lembram vidas anteriores ou futuras paixões. Noutras vidas, o Poeta achava a razão de alguns amores. Quando via passar qualquer mulher, ansiava beijá-la porque era a saudade do prazer que teve noutra vida. Depois é inexplicável a atração irresistível dum olhar feminino. O Poeta padecia porque amava a duas lindas mulheres, ambas moças, de formosuras idênticas, e não sabia a qual delas queria mais, porque em ambas o sorriso e o olhar lhe davam o langor da carícia e a doçura do beijo.

Veio a noite. A natureza repousava das lutas. As neblinas se pulverizaram ao luar que galvanizava as coisas. Era a hora do amor. Uma voz cariciosa passava, de quando em quando, a espertar as almas no silêncio da noite. Era a volúpia que despertava os corações. No estonteamento dos delíquios tudo amava: a luz, o som, os aromas e os pássaros.

A amante, em cujo quarto penetrara e que lhe aparecera depois de uma espera atormentadora, dormia. Entreabriu o cortinado da cama. Tinha um corpo feito de sol e brancuras de espuma, feito de palidez de diamante, carne formosa e quente. A luz da lâmpada suspensa, em cujos reflexos começa a nadar como lótus ou lírio num lago, iluminava-a aos poucos. Perturbado, ele beijou-lhe o corpo inteiro – o ombro desnudo, a fronte, a face, os lábios, as pestanas. Pouco a pouco, dobrou os joelhos…

Bela, em toda a nudez, de seios tremulando e cabelos soltos, assomou dos lençóis brancos, pairando, alada, acima dos seus olhos. Um véu a emoldurava. O clarão da lâmpada a vestia de um nimbo sideral, e entre fagulhas e resplendores de ouro, ela arfava.
(N. E.: neste trecho, o autor usa frequentemente a forma arcaica "alâmpada". O nome provém de arranjos florais assim designados nos Açores, usados em festas religiosas, e cuja forma reproduz a de um lampadário. Por usarem os primeiros frutos da estação, os "lampos", e os arranjos terem esse formato, deriva daí o termo "alâmpada", no português arcaico).

O seu corpo, à claridade suave da lâmpada, parecia uma estátua animada, modelo da eterna mocidade, na apoteose pagã da brancura máxima, clara e cálida, tal como um luar ao sol: - a cabeça, o pescoço, o dorso, o flanco, as faces, a corola da boca, os artelhos pequeninos, de coloridos rubros e rosicleres, os claros do perfil, as penumbras, o busto, o semblante de fulgor helênico, os olhos de veludo, com sobrancelhas pretas, os cabelos longos, louros, em cachos, o donaire dos cisnes, a plástica de impecável esplendor olímpico, os cílios, o nariz, as pálpebras, o queixo, as veias do antebraço e do colo farto, a epiderme da cor dos brilhos astrais, a pele de ouro e neve, os dedos ebúrneos com unhas cor de rosa em mãos finas e brancas, as orelhas róseo-pérola-gris de tons de agapanto e violeta, o fuste da garganta, as espáduas, as ondas dos ombros e do ventre, os dois seios firmes e rijos em riste de mármore e coral com as duas pontas em sangue, cheios de néctar do delírio, o côncavo da axila, os braços langues, os contornos das pernas…

No auge do seu delírio contemplativo, Ele lhe pedia uma ardente flor escondida no seio, com que abrandaria a volúpia, como pediu ao Papai Noel que a pusesse no sapato, provando ser discreto, cauteloso, carinhoso.

Naquele momento, queria ser espelho para ela se mirar, ou água de piscina para vê-la se banhar, mas o seu maior desejo era ser sandália…

A graça com que ela curvava a perna, volvendo o joelho para o tronco, pondo de lado o pé, levemente, fazia tremular a harpa da carne, a escala epidérmica a surdinar, idealizando-se um cofre, uma concha, uma sensitiva a cerrar-se medrosa, misto de sedução e de temor.

No seio dela, ele era capaz de lhe demonstrar a sua arte de amar, prendendo os lábios, a sugar a pele de cetim, levemente, e fazendo, sobre aquela brancura, um botão de rosa maravilhante. Essa flor equivalia a uma declaração de amor. O casal de pombos, brancos, macios, de bico rosado, do colo dela, encantava-o. E quando tocava os lábios nessa alvura sentia que aquecia o gelo, e o seu calor se lhe comunicava. Ele se perturbava ao vê-los num palpitar de neve incandescente.

Não conseguiu expressar o anseio sonhando-a nua para imaginar a beleza do seu tesouro! Ela declarou que era dele tudo e toda. Ele tinha e impressão de estar iluminado, eletricamente, quando, de repente, o amor o aquecia. Tornava-se candente, relampejava; a sua mocidade refosforejava a referver e a relumbrar. Com estes ardores, ele se comparava a certa mulher que ele viu e tinha o corpo iluminado, a chispar fogo dos cabelos, demonstrando sintoma de histeria. Também o seu coração, por qualquer coisa, se incendiava escandalosamente.

E foi por causa de um beijo que o coração se ensolarou de amor e ardeu como um incêndio, vulcão ou vesúvio onde a matéria incandescente estalava em gargalhadas infernais, quando, certa vez, entrou num palácio cujas salas eram forradas de seda vermelha e, numa delas, viu, deitada e dormindo, sobre um leito de brocado, uma deusa nua e bela. Aproximou-se e, ao beijá-la, incendiou-se e desfez em fogo.

Quando sentia cansaço e precisava recobrar energia, utilizava-se da fantasia criando visões que retratassem o seu desejo: assim, num divã escarlate e fofo, ao centro duma sala vazia e ampla, imaginava uma odalisca deitada, adormecida e voluptuosa, completamente nua. O mesmo lhe acontecia ante o corpo nu da amante. A sua boca se transformava numa cratera donde saíam ideias loucas, e palavras em combustão. Ela mesma não sabia se o chamava também porque o seu deslumbramento a extenuava, o calor a incandescia e, hipnotizada, assim, seria sempre dele, embora sentindo-se nua, ao sol…

Ela se despia dizendo que o queria. E era assim que ele a queria, considerando isso a vitória, a glória de adorar a nudez, beijando a beleza encarnada no Amor. Parecia-lhe um sonho que ele a apertasse nos seus braços depois de tanto tempo a seguir sofrendo, mas tudo esquecia por esse instante voluptuoso, não se importando de morrer depois da glória de a beijar, porque o beijo de amor era o único que os amantes possuíam para sentir-se amados ao morrer.

A mulher se diviniza pela carne. Alma e corpo se beijam. Os sonhos dos sentidos se harmonizam. A mulher formosa é sempre pura, e a nudez, quando é bela, é casta. Então a centelha palpitava volúvel durante um segundo e o seu brilho se comparava a ele. Efêmero, errante, encantava e se apagava, lembrando perfume e o sorriso. A névoa, a bruma, os beija-flores, certos namorados como as borboletas, a espuma e o beijo, todos são volúveis e inconstantes.

Ele se abrasava em furor satânico, e diabolicamente se exasperava porque a queria e com os olhos a despia e provava o fruto virgem que tem o gosto dum pêssego uruguaio dourado. Se tentava dominar a sua fome de amor, ela teimava em dominá-lo, e a carne o torturava. A sua secura era insaciável, quanto mais pedia, mais queria. Nos braços da amante fazia que a luxúria cantasse, entre explosões e gritos, jurando ser toda dele, da cabeça aos pés. Amava. Vivia, pois abrasado de desejo. Sentia se enroscar a luxúria que o fazia despir as mulheres que contemplava. Para vencer a febre, sorria, disfarçando o beijo como se o amor fosse vitupério. Nos olhos dela fulgurava a atração, denunciava-se a vontade de amar, entre loucura e receio.

Mentimos sopitando o amor, supliciados pela hipocrisia. Naqueles olhos, a volúpia relumbrava com promessas veladas. Eram feitos de ouro e alcaçuz, belos e tamaninos, cuja carícia entontecia mais que a chama. Se o desejo os acendesse, a languidez os quebrava. As asas palpebrais faziam estremecer o teclado da epiderme. A maciez da miopia, pelo translucidar das pupilas, atenuava o pecado filtrando sedução através das pestanas.

Imediatamente invocava a boca em que a língua simulava uma serpente que sugasse a vida. A boca úmida colada na epiderme queimava, acendia o desejo voluptuoso. Ao seu beijo, ele relampejava como um vulcão de rádio. Na alucinação de tanta volúpia, ele via lhe aparecer a imagem da luxúria, mulher pavorosa de olhos roxos com serpentes furiosas nos cabelos que lhe estreitavam as carnes; mole e morna, ela estendia os braços e as pernas lassas sobre os lençóis escuros e, em torno dela, vasquejavam mochos; os seios, com cicatrizes abertas, deixavam porejar vinho que quem o bebesse, sentiria a acidez do elixir da longa vida e o amargor dos narcóticos da morte.

O amor, no momento supremo, aformoseia a face de qualquer amante. A alma se incendeia; o rosto se carmina; a boca se perfuma; a fisionomia se juveniza; a vida se enche de volúpia. A criatura, nos encantamentos, torna-se criadora. Adora-se o olhar da amante no momento do enlace, quando ambos ardem de paixão. Verifica-se quanto a febre do amor nos transfigura e quanto o Amor é belo e único no mundo.

A vertigem é mais potente que a morte. Amando-se, beijando-se, os amantes mergulham em êxtase nirvanesco, formando, em tudo comum, um indivisível e uno corpo. No auge da beleza, quando os dois corpos e as duas almas são todo o Universo, Ela, angustiosa, colocava a mão no peito dele, com receio de que o coração saltasse ou estalasse a pulsar exaltado. Eis por que, no "ah!" das cantigas orientais, o coração se rasga, se sente qualquer coisa de lascivo e inexprimível. Voz da volúpia, quente, parece um beijo que machucasse o rosto sem se satisfazer, ou o rebramido dum leão.

E o corpo dela era para ele um cofre de ouro. Quando a via, chorava ao contemplar a sua beleza, como um avarento, defendendo o seu tesouro, porque sentia o terror de perdê-la.

Quem declarou que amou sem desejo, desnaturou o amor. Fora do amor dos corpos nada existe. O desejo é o perfume da mulher. Em seus pesadelos, ele sentia o furor de remorder-lhe a cabeleira e devorar-lhe o corpo. O amor o assaltava, o fascinava, o alucinava como veneno ou vinho, ardente e trágico. A febre o consumia, a sede de amor o escaldava. Qual flama voraz ou fogo fatal, ninguém padeceu na vida ou provou o Amor como ele.

O amor, prestidigitador igual à terra, transfigura a carne humana, remistura a luz e a treva, arde como o sol. Ele só desejava que, ao fim da batalha, ferido mas vitorioso, pudesse bradar que viveu e morreu de amor, e que o seu coração na agonia pronunciasse o nome imortal – Amor.

Ele, no zênite da apoteose, exaltaria a sua alegria na aurora do amor, pela glória de ter sido sua e nada haver comparável ao seu beijo. O alívio e o perdão surgem no final porque os amantes procuraram antes unir, fundir o coração, lutando, buscando os corpos ansiosos, para no auge augural serem um corpo só.

No turbilhão das dúvidas, ele, o Cavaleiro do Amor, indagava de si se estava escrito o que se realizou ou foi apenas ilusão do amor? E ficava irresoluto sem saber a cor do irreal. Sonhava acordado sem discernir se o seu desejo era ilusório. E perguntava ao coração se o que se deu seria verdadeiro ou fantasia. E sonhava que ele e a sua amante ficariam no mesmo túmulo, nesse palácio da morte onde celebrariam juntos a marcha funeral do amor e da saudade.

Nessa outra existência, onde haveria perfumes, luz, cor, música, a carnação da amante nua ao sol fulgiria como um rosal florido ou um jardim na primavera por onde bailariam borboletas. Dar-se-ia a transmigração da seiva e da energia do seu cadáver para outras energias vitais ou forças germinais ou para a forma de planta, serpente, pássaro, flor, até chegar ao não ser perpétuo do Nirvana. Os mundos cantariam sobre o seu corpo que é o Poema da Natureza, ou símbolo do Nada, a Bíblia do Amor, todo o infinito. Haveria um sabbat fúnebre dos vermes, vibriões, lêmures e lesmas, tendo por altar o corpo da amante, onde pousariam corvos e abantesmas. Ao seu lado, o corpo do Poeta, mudo, frio, estático, inerte, repousaria. Ele sofria a alucinação da vertigem do Além e do aniquilamento. Assim, na insânia da luxúria, procurou apertar contra o seu corpo o corpo da amante, e beijar a carne e fazer jorrar do seio o vinho do seu sangue. Depois deste delírio voluptuoso, ele se estrangularia com os cabelos de ouro da amante.

Daqui por diante, com o decorrer dos anos, nesta vida de paixão contínua, com o coração cansado de tantas pulsações desordenadas, com o cérebro tisnado pelos incêndios da imaginação, ele começou a recordar os últimos momentos em companhia dela, que partiu para não mais voltar, ou voltar sob formas etéreas ou visões alucinadoras. E, assim como as mulheres de certa região da Itália usam um vaso de terra, no inverno, que acendem para se aquecer, assim a lembrança e a saudade da amante lhe aqueciam as cinzas do coração. Ambos fundindo os corações num ser, condensação do amor, a fulgir, relembrariam a mocidade cheia de força e calor. Desta forma, um filho seria a presença da saudade, um beijo vivo, sempre florido.

Lembrava-se de quando se despediram, desiludidos e sem esperanças do seu amor. Ela lhe deu a mão a beijar, sem lágrimas nem tristeza. Ambos sorrindo, repararam com surpresa, nos seus olhos, que somente por orgulho sofriam tanto. Ele sempre a amou sem lhe falar e raramente vê-la, e pouco a pouco a paixão cresceu ante o indiferentismo dela. Ele sofria, e indeciso não tinha coragem de lhe dizer a sua dor. Ora ambos se encontraram, há muitos anos, num baile, e logo, ali, declararam se amar, entre canções e danças. Mas passou-se o tempo e vieram as saudades. Amaram-se em silêncio, esperando que um dia se beijariam como velhos amantes, com desprezo pelo amor legal dos maridos, que não devem se considerar traídos no amor.

A mulher que não iludia e perdoava quando sabe que a enganaram, pelo respeito do passado, devia ser amada. Ele, na juventude, durante um noivado, não amou como devera ter amado. Agora chorava de remorso pelo mal que fez amando quanto se podia sem ter amado quanto devia. Como homem sujeito à contingência, ele rolou nos sete círculos do Inferno, bebeu dum trago o veneno do amor-pecado.

Mas, sentindo desilusão da paixão volúvel, consternou-se e pediu perdão à Mulher imaculada, cuja perfeição o iluminava, conquanto a beleza o deslumbrasse. Ao se despedir, ela depois escreveu as últimas impressões do caráter dele: exagerado, voluptuoso, orgulhoso, imaginação viva e aterradora, delírios visuais, espasmos olfativos, cérebro em vulcão, fantasia vária e voraz, ora adorando a Suzette mas querendo a Suzon.

Ele respondeu-lhe, defendendo-se e justificando o seu caráter: volúvel é não vulgarizar o amor cuja eternidade e constância fatigam, torturam, e nisso ele seguia a divisa "renovar ou morrer"; exagerado, mas o exagero é sublime quando abrange o infinito ou o eterno.

Muitas vezes, ele comparava a transição das estações do ano com a transição dos anos na vida dos amantes. Vai-se a primavera, cheia de flores que murcham, envelhecem e morrem; surge o outono, prenúncio do inverno. As estações se mudam. A beleza desaparece com a velhice e não renasce como as flores. Seguindo a mesma lei da natureza, as flores e os corações, também o amor devia renascer como a primavera, tal como permanece nos amantes até a morte. E assim, quando encanecidos, parecem vulcões ardentes e extintos onde se depositam as neves do inverno.

Na vida, o homem, seja qual for a profissão, fere, torna-se herói, assassino, rouba, pilha, mata, afronta todos os castigos, canta e soluça, viaja por toda a parte, à busca de fortuna, conquistando terras, mares e céus, e até praticando a pirataria – somente para cobrir de joias a mulher. No entanto, é ingênuo quem julgar que conhece a fundo o coração da mulher, porque ela é o mistério, e o mistério é todo o amor. A mentira, na mulher, é consolo para o mundo, porque a verdade não existe e a vida é uma ilusão. E melhor é morrer, integrando-se na eternidade onde há paz, harmonia, deliverança. O Ângelus plange à tarde. Vésper brilha e a sua prece tem saudade dos amores passados. Na vida tudo dura um dia. Tudo é ilusão e miragem, nada restando na vanidade do homem que deve buscar o não Ser, abençoando o Nirvana, a completa extinção da vida.

É triste ver crianças vestidas de anjo numa procissão, ou acompanhamento fúnebre de uma virgem, ou ver casar contra a vontade a mulher que se amou, mais triste, porém, é a despedida da amante dizendo – adeus! Se ele tivesse de cumprir alguma pena, de sentir a agrura de um castigo, de ficar imóvel e sem voz, e de sofrer todas as dores – pedia que lhe conservassem os olhos para poder vê-la até a morte. E ao morrer deixaria a fita cor de rosa, o malmequer, o perfume, os livros de versos, os beijos; somente levaria consigo o coração, a melhor das lembranças.

Muitas vezes, ele se alegrava por vê-la de volta, após longa ausência. Pensava, então, no terror de perdê-la, o que lhe parecia maldade, cruel castigo, imerecido. Ao pensar nele, provavelmente ela não devia esquecer que ele a amava, e que sofria desde que ela se fosse embora, assaltando-lhe sempre o temor de que partisse e não voltasse mais. A rosa linda e pura vive um dia, mas o perfume jamais se some. Assim, entre os amantes, um, o que sobreviver, sentirá o aroma da saudade.

Ele nunca esquecerá o dia da despedida. Ela foi o seu maior amor, há tantos anos. Levava-lhe flores, mas ambos, um por orgulho, outro por dever, ocultavam quanto se adoravam. E viveram revendo sonhos desfeitos. Agora era tarde, mas condoia vê-la sofrer seu amor oculto. Mas se ela lhe pedisse para ficar, ele não partiria naquele momento, houvesse o que houvesse.

E quem era essa Mulher? Como se chamava? Ele respondia imediatamente que o nome da mulher amada se guardava em segredo, não se dizia ao melhor amigo, nem às estrelas. Era preciso cuidado durante o sono, e mesmo na agonia, não o confessar.

O Poeta dava estes conselhos e sempre sentia irreprimível desejo de pronunciar o nome de quem amava, quando escrevia as suas canções de amor e no receio de trair o coração nunca mais as continuava, para depois libertar a fantasia no mundo dos sonhos.

Então, invocava, evolvendo os seus delírios amorosos para o panteísmo, o Mar, seu velho e triste amigo, para lhe contar a sua dor, porque somente ele compreenderia o desespero humano de viver sem amor. O Mar amava a Lua sem esperanças de que ela calculasse a sua agonia e o seu suplício porque não sabia amar. A Lua não ouve, indiferente e fria, as preces do Mar. Quando ela surgiu no horizonte, o Mar ansiava por galgá-lo para escalar o céu, mas estava tão distante!

O romance do Poeta era o mesmo. Ambos, ele e o mar, cantavam baladas. O Poeta cheio de ideal; o Mar, de orgulhos. Ambos confundiam, no amor, os versos e os marulhos dos seus corações. O Mar entesourava fortunas e ia buscar riquezas na foz dos rios para o seu fausto nupcial; reproduzia nas espumas de prata o luar e os céus; punha a fulgir um astro em cada grão de areia; deixava as conchas cheias de prismas e sons; acendia faiscações de pedras preciosas na brancura das maretas e madrias.

O Poeta fazia o verso radiar como um brilhante, nas palavras e nas estrofes que burilava, no qual se reproduzia a harmonia na luz entre as combinações das sílabas, variando os semitons das vogais. Eis por que ele pedia muitas vezes à amante que encostasse ao ouvido a sonora concha do mar e escutasse longo gemido. Como a concha, eram os seus versos. Eles conservavam sons longínquos do coração humano, ecos distantes da sinfonia do amor.

O mar sofria a sua amargura há milênios. O Poeta vivia torturado com esse amor, há anos. Assim viviam. O mar fazia pérolas das lágrimas da lua. O Poeta fazia do som da voz da amante a música das frases. O mar se enfurece, brame, se encapela, em cólera vã. No entanto, se no meio da procela, entre vagalhões e ribombos, um náufrago implorasse, ao morrer, o nome da Lua, o mar acalmaria os ímpetos da borrasca e o levaria ao Palácio das Naias, ou à Cidade de Is, dando-lhe vida.

O mar, sendo brutal, é diferente em calmaria. Torna-se dócil, rojando-se, carinhoso, nas praias. Pois o Poeta aconselhou ao Mar que fizesse versos, sendo o seu amor perpétuo, e assim espalhará o coração pelo mundo, porque o melhor consolo para os poetas, na Terra, é dizer o que a sua alma contém de alegre ou triste.

Ora, também, ambos universalmente se amaram. O Poeta, sob a impressão desta prosopopeia entre ele e o mar, olhando o céu à noite, adivinhava onde habitaram noutra vida anterior, em cujo paraíso se encontraram. No céu dos devaneios olhava, abstrato, lírios de ouro que no resplendor do eterno encanto parecem estrelas mas são mulheres. Ela foi o céu, ele o mar. Ela se espelhava no mar que ficava azul, desconhecendo que essa ilusão era o próprio amor. No evolver daquela paixão, talvez ele fosse a flauta do primeiro pastor, cujas harmonias eram ela própria.

Em seu ciúme eterno, quem sabe se não se transformou em roseira que é o símbolo do sonho na matéria, cujo perfume era a alma dela. As almas de ambos, sentindo a comunhão das vidas, existiam, noutras eras, nos ardores da luz, nas sombras, nos perfumes, nos sons e nas cores.

A áurea chama solar do amor destes fundiu num só dois corpos, dentro do coração de todos os amantes, onde, outrora, houve sobre a terra um abraço e um beijo. Ambos eram o Amor Infinito que multiplicava os noivados. Desta forma, chegaram à serena amplidão do seio criador, no Nirvana, no Azul. As almas nos Conventos substituem-se, de modo que frades e freiras vivem de amor, pela humanidade. Eles rezam e pensam nos que se abismam no inferno do mundo.

Quem dera ao Poeta provar o pão amargo de Santo Onofre e abrir o coração onde houvesse a brancura do pranto. A Felicidade surge a quem não a merece e foge dos que a buscam na vida. O seu todo é um lirismo satânico – olhos de ouro, vestidos róseos, com encantos e malícias femininas. Por ele passou uma vez, sem a pressentir, sorrindo, alheio a tudo, pensando nela, e nunca mais a viu…