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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão"
Martins Fontes (5)

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Este artigo foi publicado no dia 23 de junho de 1996, no suplemento AT Especial (página 6), do jornal santista A Tribuna:
 


Ilustração publicada com a matéria

MEMÓRIA

Martins Fontes

Festa da natureza para um poeta

Terezinha Tagé (*)

Colaboradora

 

"Foi junto ao Coliseu, à direita do Teatro,

No mais puro e feliz de todos os recantos,

Que, em junho, a 23, do ano de oitenta e quatro,

Desabrochei ao sol, na Cidade de Santos".

(Martins Fontes)

Hoje os pássaros da Cidade, as flores, as árvores amanheceram saudosos. Não porque tenham motivos de tristeza. Bem ao contrário. Eles têm uma festa no coração. É o dia do aniversário do poeta, ou melhor, do "seu" poeta. Poucos entre os nossos artistas das palavras apreenderam tanto a natureza em suas obras quanto José Martins Fontes, o aniversariante.

Seu trabalho como artífice de poemas surgiu um dia entre nós, como um jardim encantado pleno de expressões singelas, de mensagens serenas onde a bondade e a simplicidade sempre fizeram morada.

No princípio deste mesmo século que dentro de poucos anos desaparecerá (N.E.: século XX), o poeta escrevia com uma linguagem ousada e brejeira, saudando os pássaros, comparando-se com eles:

"Ó sabiá-laranjeira, ó canário da terra,

Pintassilgo da várzea ou sanhaço da serra

*

Alegrai, minorai a tristeza da vida!

Cantemos! Permiti que eu me julgue uma destas

Patativas do campo ou das nossas florestas,

Porque nada mais ou, trovador naturista,

Do que festivo e bom, um tié-fogo santista.

Nem mais aspiro a ser do que um tietê da serra

Um sabiá de São Paulo, um canário-da-terra".

("O tié-fogo-santista")

E o bom tié-fogo santista marcou seu canto pela sonoridade de seus versos, uma característica que o tornou especial para a história das formas da poesia brasileira. Poeta voltado para as manifestações próprias dos sentidos como o escritor Marcel Proust, suas palavras absorvem aromas de frutas, sensações delicadas, sopros do vento em aliterações e outros recursos empregados pelos poetas simbolistas e modernos. Este fato permite que ele seja considerado por suas diferenças, ou, um criador acima das convenções.

Este lado extremamente musical das produções de Martins Fontes pode ser sentido em versos, como um quadro de pintura impressionista. Paisagem brasileira numa mistura de Van Gogh e Debussy:

"Pios, pios, pipilos, murmurejos...

Bamboleios de varas e bambus...

Tudo quanto um prelúdio, ainda em solfejos,

Traduz.

Ruflos... Rufos de córregos... Adejos...

E, entre rebrilhos, bubuiando, a flux,

Da luz.

A araponga estridula. Simultâneo,

Bemol.

E, na orquestra da mata, de repente,

Como um dilúvio de ouro incandescente,

O sol."

("Madrugada em Itaipu")

Este cantar que nos envolve pela leveza, tem consciência de sua fugacidade. Não se trata apenas da inconstância da palavra situada na tênue rede dos ventos escritos, mas, da velocidade e passageira aparição terrena que chamamos Vida. Um exemplo desta poesia auto-consciente está em textos como:

"Os versos do vento, tais quais o que escreves

além de imperfeitos são frágeis e breves...

A estrofe que o vento planeja, arquiteta,

É às vezes formosa, mas sempre incompleta...

O Vento é miragem do meu pensamento,

Que tudo o que sonha desfaz num momento...

O Vento inconstante, doudeja, divaga,

Desenha na areia, constrói sobre a vaga...

Erije palácios, castelos tão belos,

Mas feitos de nuvens são estes castelos...

E as obras dos poetas, humanas, terrenas,

Tais quais as do Vento, são sonhos apenas...".

("Os versos do Vento")

Tal como o vento, seus versos espalham aromas de frutas e flores, guardando símbolos de nosso Litoral, hoje pouco cultivados. Tudo para lembrarmos das riquezas naturais que estamos perdendo. Ler os poemas de Martins Fontes nos incentiva a respeitar e a preservar nossos tesouros e nossa maneira simples de ser.

Ele era simples, sábio, bondoso com a antiga gente caiçara, acostumada a conviver com o que havia de natural e alegre em nossa terra.

Toda a sua atenção voltava-se para um detalhe ou uma pequenina planta, para uma folha, uma fruta, um ponto às vezes desprezado por todos, mas que, no entanto, a sua preciosa sensibilidade transfigurava em sua obra de arte. Podemos sentir este fato em versos como:

"I

O manacá, o jasmineiro

A murta, o jambo, o limoeiro,

Cada qual mais devaneador,

Na exalação do seu desejo.

É como a brisa, é como o beijo,

Um coração aberto em flor...


II

Porém, a essência que me encanta

É a de uma folha, é uma planta,

Que, embora humílima, é um primor;

A malva-rosa paulistana,

Que alegra a porta da choupana,

Ou de um palácio, todo em flor...

 

III

Da antiga vida, tão modesta,

Mas tão feliz, nada mais resta...

Perde a moral todo o valor...

Já não existe equivalência

Entre o progresso e essa existência

Da malva-rosa folha e flor...

 

IV

Folha que fala! Evocadora

Saudade purificadora,

Que quer dizer: - Adeus! Amor!

Ai, quanto me seria doce,

Que esta canção marcada fosse

Por esta folha, quase flor..."

(Trechos selecionados do poema "A Malva Rosa de São Paulo")

Estes sentimentos de nostálgica intuição, com que o poeta previu as transformações que sua terra sofreria, comprovam a agudeza de seu espírito. E para nós, que aqui estamos, hoje, comemorando seu aniversário, ele deixou este presente. Sua presença imortalizada em palavras:

"Feliz, nestas largas, longuíssimas praias,

Sorrindo, brincando foi que eu me criei...

Dormindo entre avencas, murtas e samambaias,

Como os pescadores do Porto-do-Rei...

*

Vivi nestas praias... Espero que um dia,

Aqui me sepultem, me deixem ficar

Exposto, desnudo, como eu bem queria,

Num seio de areia, defronte do mar..."

(Trechos de "Canção praiana").

(*) Terezinha Fátima Tagé Dias Fernandes é pesquisadora e professora no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP.


A Romaria dos Cravos Vermelhos

Da Reportagem

Uma antiga homenagem de Santos ao poeta Martins Fontes será retomada hoje: a Romaria dos Cravos Vermelhos. Trata-se de uma visita coletiva ao túmulo do poeta no Cemitério do Paquetá, onde, como manda a tradição, serão depositados cravos vermelhos e outras flores.

O evento, coordenado por Rui Calisto, pesquisador e biógrafo de Martins Fontes, é aberto a todos os interessados, a partir das 13h30. O ponto de encontro é a porta principal do Paquetá, onde terá início a caminhada.

Mas esta não é a única comemoração do aniversário do poeta. Às 15h30, no Museu de Arte Sacra de Santos, será inaugurada uma exposição de obras e objetos que pertenceram a ele. A mostra, organizada pela historiadora Wilma Therezinha Fernandes, faz parte da programação de aniversário do museu. São obras raras, de coleções particulares ou pertencentes ao acervo da unidade.

Música e poesia - Às 16 horas, haverá palestra de Rui Calisto sobre Martins Fontes, e Leda Sylvia Szochalewicz dirá poemas do aniversariante, entremeados pela apresentação de canções brasileiras pelo grupo Clave's.

O conjunto, composto pela soprano Carmem Ruth Hoffmann, o tenor Antônio Carlos Fontes e o tecladista Luís Sérgio de Oliveira, pertence à Academia Feminina de Ciências, Artes e Letras de Santos.

Além de canções antigas e música de câmara, serão apresentadas outras, de autores modernos da MPB, como Tom Jobim e Djavan.


Personagem do imaginário santista

Narciso de Andrade (*)

Colaborador

Nascido em 1925, deu tempo para que eu conhecesse pessoalmente Martins Fontes. Havia um relacionamento antigo entre as famílias: o pai do poeta, Silvério Fontes, foi um dos maiores amigos de meu avô. Tenho em minha frente a fotografia dos dois na Fazendinha, em Itanhaém.

Minha avó, Carolina Remião de Andrade, soube cultivar e continuar essa amizade e fez questão de me encaminhar no mesmo sentido, levando-me sempre em sua companhia nas constantes visitas que fazia ao poeta em sua simpática residência da Rua Joaquim Távora. Era um tempo diferente de uma Santos diferente em que as pessoas se visitavam. Às vezes, o moleque que eu era ficava aborrecido no ambiente excessivamente austero de certas residências. Jamais aconteceu isso na casa do poeta. Havia aquele balcão no quintal construído especialmente para oferecer comida aos passarinhos. Não era rara a presença dos sonoros sabiás, rolinhas espantadas, tié-fogo e o soberbo e magnífico tié-sangue. E havia, sobretudo, a presença do poeta. Eu tive essa felicidade, ver, ouvir, sentir bem de perto a presença de um poeta em minha infância.

Como todos sabem, se não sabem deveriam saber (esta cidade está perdendo a memória), Martins Fontes era médico. No meu tempo de menino, seu consultório ficava em cima da Casa Lemcke, ali na esquina da Rua Riachuelo com a João Pessoa. Dividia o consultório com Hugo Santos Silva e a sala de espera era comum dos dois com João Carlos de Azevedo, que era o nosso médico. Lá ia eu, levado por minha avó, tomar minhas injeçõezinhas, depois a visita ao poeta: "Esse menino continua tomando as injeções do João Carlos? Ele precisa é de mar, de sol, de poesia".

Certa vez, perguntei a minha porque ela não se tratava com o Zezinho, como ela chamava o poeta, e ela me explicou que ele estava sempre coma cabeça na poesia e não queria perturbá-lo. Mas tinha muito carinho por ele e fez questão de me levar ao velório na Beneficência Portuguesa e acompanhar um bom trecho do enterro no Paquetá. Os três maiores enterros de Santos em todos os tempos foram de Martins Fontes, nunca vi tanta gente, e os do benemérito Benedito Júnior e Esmeraldo Tarquínio, lembrança perene da cidade.

Geralmente depois de mortos é que os poetas passam a integrar o imaginário de uma cidade. A memória coletiva absorve as marcas de sua presença nas ruas, nos parques, praças e praias. Alguma coisa dos traços físicos do homem se transforma em estátua, busto, monumento. Passa-se a contar histórias, acontecimentos, situações de vida, grandiosas ou corriqueiras. O poeta cresce no passar do tempo. E entra no imaginário da cidade ao lado daqueles que souberam deixar marcas indeléveis no chão da história.

Com Martins Fontes aconteceu de forma diferente. Ainda em vida já assegurara seu lugar no imaginário santista. Com justiça, porque o sangue que corria em suas veias era o mesmo a correr pelas artérias da cidade. Ele disse: "Não há fanatismo, como alguém o poderia supor, na ardência com que proclamo as glórias de Santos".

E depois de descrever uma Santos deslumbrante e impossível, por ele criada e celebrada, explode de amor:

"Sonho integrar-te no teu solo, desfazer-me na tua terra, desabrochar nas tuas rosas, ser tu mesma, pelo calor, pela seiva nutriz, pelo poder da luz, pela magia da matéria".

(*) Narciso de Andrade é escritor e poeta.

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