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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (17-J)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é O Crime do Estudante Batista, aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 pela Companhia Editora Nacional (São Paulo - Rio de Janeiro - Recife - Bahia - Pará - Porto Alegre), em segunda edição. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 171 a 177):

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O crime do estudante Batista

Ribeiro Couto

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A Casa do Gato Cinzento

"Alfredo - É dessas coisas que acontecem. A gente não as espera. Tanto melhor!

Lembras-te de nossa época de estudantes, em S. Paulo? Faz muito tempo... Tinhas a mania de ler o meu diário. E eu tinha a mania de escrever esse diário, com a esperança idiota de ser célebre mais tarde e aquelas páginas servirem para a "documentação" de minha vida e de minha psicologia. Cresci em anos, entrei a sofrer desilusões - como é banal! - mas não perdi a mania do diário. Nestes vinte e cinco anos de luta, que põem um peso incômodo nos meus quarenta, nunca deixei de consolar um desgosto, ou de fazer durar uma alegria, com uma nota paciente no meu diário. O diário é o confidente, Alfredo!

Pois bem, eu não saberia dar melhor resposta à tua pergunta do que mandando-te os trechos dele que se referem à minha tardia iniciação sentimental. Verás que, no fundo, sou o mesmo egoísta de outrora. Nada tens de que te espantar. Apenas ainda não chegara o momento culminante do instinto... Sim, o mesmo de há vinte e cinco anos, quando nós éramos iluminados, ardentes, não sabíamos nada da vida e tu não sonhavas arrasar os teus dias nessa insípida Suécia glacial, atado à legação e à tristeza do exílio.

Eis os pedaços do caderno... Vê aí se eu não sou de fato o mesmo e se isso que aconteceu não pertence ao número das tais "coisas que acontecem", aliás para nosso bem, porque nada como  os inesperados deliciosos!

"2 de maio - Verdadeiramente, foi o gato cinzento que me fez mudar para cá. A mudança de um homem só - é um caso melancólico. De cada vez que mudei tive sempre a impressão de ir para mais longe, para mais longe, para mais perto do fim. Bem. Ao passar, gostei da paisagem fascinante: de um lado o mar e de outro a montanha. Gostei do jardinzito comum, com os canteiros modestos e cuidados, as roseiras com poucas rosas, jasmineiros, craveiros, violetas. Gostei do pedacinho de cartão e da letra larga e sincera em que estava escrito: "Alugam-se dois quartos". Mas gostei, principalmente, do gato cinzento, distraído e pacífico, a tomar sol à janela. Eu não tinha a intenção de mudar-me. Achei, porém, um inexplicável encanto, um sossego enternecedor, uma simplicidade comunicativa na casa, no jardinzito, no anúncio, no gato... A voz dos filósofos é que os gatos ensinam o caminho da felicidade. São todos, como aquele, pacíficos e distraídos... E o gato cinzento da janela ensinava-me, evidentemente, a vir, como ele, tomar sol no jardinzito.

"4 de maio - D. Esperança anda pelos setenta anos. A netinha Clotilde, que ela criou desde pequena, tem vinte. D. Esperança e Clotilde vão à missa um dia sim um dia não. Há santos por toda a casa. Na saleta de jantar, três "ceias de Cristo".

"10 de maio - Como são maus e estéreis os destruidores da fé! Nunca desprezei tanto os que negam Deus como agora que o acaso me colocou na intimidade desta velha e desta criança. À tardinha, quando volto do trabalho, encontro-as sentadas no jardim. D. Esperança com o rosário à mão, o "Marechal" ao colo; Clotilde atenta ao bordado que os seus dedos longos e finos vão tecendo. E conversamos sobre vidas de santos, milagres, a vida no céu... D. Esperança diz, por exemplo: - "Desde os doze anos sou muito religiosa". E enquanto eu procuro reconstruir d. Esperança aos doze anos de idade, ela vai contando a história das suas imagens, dos seus santinhos, dos seus oratórios, tendo sempre o cuidado de empregar "troca" ao invés de "compra". Dou muita atenção a tudo. E minto: invento comunhões, confissões, promessas, crio uma personalidade católica para uso do meu sentimentalismo comovido.

"19 de maio - Já sei do único desgosto que perturba d. Esperança: seu irmão, mais moço do que ela vinte anos, médico numa vila de Minas, é "livre pensador". Quando ele desce da sua montanha e vem ao Rio, comprar livros e zangar-se com a vida tumultuária da cidade, hospeda-se aqui E durante uma semana são discussões sobre Deus. Ela procura convencê-lo em vão. E sofre. Felizmente, o velhote só vem ao Rio duas vezes no ano. Duas vezes no ano, portanto, d. Esperança acende uma velha especial a Nossa Senhora para que as perdoe, a ela e a Clotilde, de terem ouvido as blasfêmias daquele ateu que não obstante adoram, por ser uma das melhores criaturas da terra.

É com um riso divertido e infantil que Clotilde me conta esses episódios da vida serena da avozinha. Tão simples, tão franca? essa pálida Clotilde dos cabelos em trança! Vivendo no seu pequenino mundo, entre a igreja e a casa, sempre junto da avozinha, Clotilde não sabe das intrigas nem das maledicências da cidade. Então, na sua encantadora palrice de rapariga espontânea, conta-me coisas suaves dos desgostos e prazeres da avó.

"21 de maio - Quando mais conversamos, esta menina e eu, é pela manhã. A avozinha levanta-se um pouco tarde, porque o ar ainda frio das primeiras horas não faz bem ao seu reumatismo. Clotilde, que madruga todos os dias às seis, ferve ela própria o leite e vai depois para o jardim tratar das plantas. E, ela sentada na terra fofa dos canteiros, entre a folhagem úmida, eu à janela, de cigarro na boca, tranquilamente, chalramos. Como é festiva, natural, doméstica!

"28 de maio - O fato é que me sinto cada vez melhor, mais puro, mais sadio e mais honesto nesta casa de d. Esperança, de Clotilde e do gato cinzento... Estou criando hábitos metódicos de homem disciplinado. Nunca me recolho depois das nove. Não leio mais até tarde. Acordo-me cedo. Cantarolo a "Traviata" ao chuveiro. Vou de pijama à saleta de jantar para tomar o meu leite. O "Marechal", que está confortavelmente habituado a mim e aos meus livros, entre os quais dorme as suas mais profundas sonecas, acompanha-me então miando com doçura e dou-lhe solda de miolo de pão no pires. É um encanto ver-lhe depois os pelos híspidos do focinho com gotas de leite a pingar. Em seguida, volto ao quarto, pego de um livro e vou para a janela. O sol põe faiscações no mar e na montanha. A paisagem toda resplandece. No jardinzito, já Clotilde anda aos bichinhos, catando folha por folha. Então repouso o espírito, ouvindo-a falar. E quando saio para o trabalho, cheio de tédio pelos aborrecimentos que me esperam na cidade, consolo-me com a ideia da volta, à hora do cair da noite, em que d. Esperança, com o "Marechal" ao colo, contará milagres e histórias da sua infância longínqua, enquanto Clotilde, de olhos baixos e um sorriso imperceptível diluído na boca, tecerá o seu bordado infinito.

"5 de junho - Encontro em cima de minha mesa este bilhete: "Peço-lhe que me empreste um romance, às escondidas de vovó. Quero um romance que acabe bem. Sua, Clotilde". Meu Deus! Estou certo de que esse "sua" foi posto aqui sem a mínima intenção. Estou absolutamente certo. No entanto, assim que os meus olhos surpresos caíram sobre o bilhetinho inesperado e adorável, estremeci. Ah! senti a fragilidade dos meus quarenta anos de solteirão".

E aí tens, Alfredo, meu querido Alfredo, a primeira fase da minha iniciação sentimental. Não foi uma "coisa que aconteceu"? A gente não espera. Tanto melhor!

E como para a próxima primavera aguardamos o nosso bebê número um, desejaríamos bem, Clotilde e eu, que requeresses ao governo as férias a que tens direito pelo regulamento. Deixa o frio da Suécia e vem tomar um pouco de sol do Brasil. Batizarás o garotinho, ou a garotinha, e conhecerás Clotilde. Só não verás nunca a pobre d. Esperança, que há um mês nos deixou, sorrindo, caminho do céu. E é a única mágoa em toda a nossa ideal felicidade.

Abraça-te, com imensa ternura, o teu, que é o mesmo egoísta de há vinte e cinco anos - Carlos".