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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-J)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 105 a 115:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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O Mistério de Tia Biluca

Desde que chegara, João ardia no desejo de encontrar tia Biluca.

Era uma prima em terceiro ou quarto grau, que ele chamava, desde pequeno, desse modo. Na família fora sempre considerada à parte. O major Nazaré, pai de João, não gostava dela. Imponderável e vago, um excitante mistério cercava tia Biluca.

Enviuvara cedo. Começara a ensinar violino para viver. E sempre tão alegre, tão boa, tia Biluca!

João não compreendia a disfarçada reserva com que a recebiam.

Quando a filha única lhe morrera, ainda na flor dos oito anos, tia Biluca, pela primeira vez, ficou desesperada. Não quis saber mais de Ponta Grossa, onde tudo lhe recordava a criaturinha adorada. Botou-se para Porto Alegre, com o seu violino, num impulsivo instinto de zíngara.

Foi pena.

João tinha ternura por aquela tia. Em casa todos falavam muito a respeito dela. Falavam envolvendo a conversa de segredo, ou tapando os ouvidos às crianças com barulhos exagerados de louças e talheres, na mesa. Por baixo de uma geral e mole benevolência, tinham contra Biluca, escondido, um nítido rancor. Vinha isso de coisas que ela fizera passar ao marido, parecia.

- O Guedes sofreu boas!

Desasa frase, muito pronunciada na sua casa, é que João induzia hoje a razão da hostilidade secreta contra tia Biluca.

Na cabeça de João aquilo estava embaralhado. Diante de tia Biluca, via sempre contente, ou respeitoso, o rosto da família. Rodeavam-na de prestígio, porque era inteligente, porque era bonita, porque se vestia bem.

- Biluca, você é uma sabida!

- Esta é que sabe viver!

Ela ria-se, expondo uns dentes pequenos na boca muito gordinha.

Mas o pai de João, se ela virava as costas, franzia as sobrancelhas. E um silêncio acompanhava sempre a saída barulhenta de tia Biluca.

Afinal, ele não sabia se devia estimá-la ou não.

Sim, essas recordações tinham-se lhe apegado à memória um tanto confusamente. Nunca esquecera a sua dúvida, a sua apreensão de menino por causa daquele mistério.

O que mais guardara, de certo, fora a lembrança da boa mesa em casa de tia Biluca. Os domingos em que almoçara lá ficaram-lhe na retentiva como que nimbados de um fulgor de festa. Os doces eram maravilhosos. A prima Cota, coitadinha, metia-lhe os papos-de-anjo pela boca, enchia-lhe os bolsos de balas de ovos, arranjava-lhe pequenos embrulhos de bolos.

Em casa, porém, de regresso dessas visitas, a conversa entre o pai, d. Violeta e as outras pessoas da família, tornava a envolver tia Biluca, a sua pessoa simples e feliz, de uma impalpável desconfiança. Não compreendia.

Cota morreu, enfim. Tia Biluca não se conformou, preparou a mudança e partiu para o Sul. A última recordação que tinha dela era de um canto da sala de jantar, a avó costurando um vestido junto à máquina, a mãe de braços cruzados e tia Biluca chorando, com um retratinho de Cota na mão.

O tempo foi passando. A princípio dizia-se:

- Como andará Biluca lá em Porto Alegre:

- Ora, melhor que nós, com certeza.

Depois, pelos anos adiante, tia Biluca ficou completamente esquecida.

Aos quinze anos, indo pelo Natal a Ponta Grossa, em férias - ele cursava um colégio interno de Curitiba -, João, como todos na família, teve uma surpresa: tia Biluca apareceu na cidade. Vinha, já aí, do Rio de Janeiro, onde estava morando.

- Violeta!

- Biluca!

- E este? É o Joãozinho? Meu Deus, está um homem. Estamos ficando velhas, minha negra.

- É verdade, Biluca.

- A minha Cota, se não morresse, também já estava moça.

Uma ponta de melancolia velou a alegria expansiva de tia Biluca. Durou um instante.

E mais abraços, e mais beijos. Até o major Nazaré, que tinha birra, mostrou-se amável. Depois, como soubesse que tia Biluca pretendia ficar hospedada com eles, franziu a cara e não apareceu para jantar.

À noite, voltando de jogar solo no Clube do Comércio, o major encontrou Biluca com um peignoir cor-de-rosa de d. Violeta, a tomar chá com todos, em risadas felizes, contando histórias da sua vida boêmia de professora de violino.

D. Violeta, com o seu acanhamento de burguesa, só a interrompia para exclamar:

- É uma pândega, esta Biluca! Uma sabida!

Viera gora, com fofices inúteis de carne luxuosa. Exalavam-se dela perfumes de pós, artifícios, elegância. E risonha!

Coitada! Apesar do gênio alegre com que resistia aos estragos da velhice entrante, estava em franco princípio de decadência. Pintava o cabelo de castanho-claro. Dentes falso marcavam, na sua antiga bela dentadura, pequenas manchas de porcelana, sem brilho. Andava apenas pelos quarenta e três anos, dizia ela.

- Você sempre moça, Biluca!

D. Violeta não tinha olhos para aqueles danos. O que a deslumbrava era a alegria, o apetite de viver de tia Biluca, expandido em gargalhadas sonoras que irritavam o ácido humor do major Nazaré.

Nessa noite, entrando no banheiro antes de ir deitar-se, João parou: no escuro branquejavam duas pernas. Apertou os lhos e distinguiu que era tia Biluca, de costas, arranjando as saias de baixo. Sem fazer nenhum ruído, recuou e foi fechar-se no quarto. Esteve até madrugada sem pregar olho, com aquela visão.

Dias depois tia Biluca voltou para o Rio. Recebera uma carta que a põs em ansiedade. Tratava-se de reger a cadeira de violino num curso recente, fundado pelo Círculo das Senhoras Católicas.

- Aquele general Soares é um anjo!

Nas suas relações havia sempre generais, marechais, almirantes, embaixadores, ministros, senadores, presidentes da República. Esses exageros é que azedavam mais o ânimo hostil do major. Em compensação, d. Violeta, escutando as narrações triunfantes, fruía um pouco daquele Rio de Janeiro dourado que ela humildemente amava nos cartões postais.

Essa cadeira de violino no curso do Círculo, por exemplo, fora obra do general Soares.

- É uma das minhas boas relações no Rio, Violeta. Ainda há pouco precisei falar ao ministro da Guerra, negócio de uma promoção de um segundo-tenente, filho de uma amiga minha, e o general me deu uma carta que só você vendo. Foi tiro e queda.

Concluiu:

- Aliás, tem gosto muito apurado em matéria de música. Me aprecia muito.

Tia Biluca partiu para o Rio.

Joãozinho voltou para o internato. Nunca mais esqueceu aquelas duas pernas, muito brancas, no escuro do banheiro, sob as saias remexidas. Considerava-se um bandido porque sentira - ah! sentira - uma atração infrene por tia Biluca.

***

Três ou quatro anos depois apareceu em casa uma carta de Biluca queixando-se de que ia morrer e pedindo duzentos mil réis. Estava num hospital, sem recursos.

O major ficou furioso.

D. Violeta, que era boa, arranjou às escondidas cem mil réis e mandou-os à prima.

- Pobre! Cada qual sabe de si e Deus de todos.

Biluca respondeu agradecendo com lágrimas e comunicando que, já restabelecida, ia passar dois meses na Bahia, contratada por uma associação de concertos clássicos.

***

Como o tempo correra!

A carta de tia Biluca parecia de ontem. Depois dela, no entanto, quanta coisa se passara de triste em Ponta Grossa!

Joãozinho, agora morta d. Violeta e na miséria o major, viera tentar a vida no Rio.

Que seria feito de tia Biluca?

Ao sentir, cada dia mais, como era difícil o pão nesta cidade imensa, uma admiração crescia nele pela tia. E no meio do egoísmo anônimo das ruas, palpitava-lhe o desejo de ver tia Biluca, de achar aquele ponto fixo de ternura, de recordação da vida passada e da terra ausente.

Boêmia! Com as suas risadas, com o seu violino e o seu mistério, tia Biluca devia sofrer de vez em quando bem maus pedaços, embora a contar grandezas de generais e ministros. Ela era "sabida", dizia a mãe.

Coitada! É preciso viver.

***

- Joãozinho!

- Tia Biluca!

- Eu ando um tanto fraca da vista, mas reconheci você imediatamente.

E repetia com ênfase, como se quisesse impor-se a todos os que a olhavam  naquele ponto de bondes da Rua Sete, canto da Avenida:

- Imediatamente! Imediatamente!

Joãozinho viera do almoço, num restaurante de 1$200 da Rua Sachet e lia um jornal, a ver se encontrava um emprego melhor que o seu.

- Ora veja! Como é que você não me procurou até hoje?

- Onde, tia Biluca?

- Você não tinha o meu endereço?

- Não, tia Biluca. Desde que a senhora esteve doente e foi depois para a Bahia, nunca mais nos escreveu.

Ela ficou silenciosa um momento, como a fazer um esforço de memória; depois, abanou a cabeça aprovando;

- Tem razão, Joãozinho.

Estava toda de roxo, gorda, solene, velha, com um meio véu a pender-lhe do chapéu sobre o rosto rugoso. A boca pintada de rouge, em placas secas. E o pó de arroz se esfarinhava na sua pele áspera, estragada pelas tintas e pelo tempo.

- Você está empregado?

- Estou, sim senhora. Numa loja de calçados.

- Me procure. Ouviu?

Tia Biluca remexia na carteira:

- Olhe, o meu endereço está neste cartão.

Joãozinho tomou o cartão e leu:

Mme. Silva Guedes

Professora de violino

Rua José Eugênio, 307                                Andaraí

- Obrigado, tia Biluca. Eu apareço.

- E você onde mora?

Joãozinho sorriu acanhado.

- Hein?

- Provisoriamente,num quarto na Saúde.

- Santo Deus, logo onde! Arranje um bairro melhor, Joãozinho.

Depois, quis saber onde era a loja. Estiveram em seguida sem falar, ele constrangido, vendo que o seu desejo de encontrar tia Biluca sofrera uma decepção; ela, pomposa, com o seu nobre ar teatral, de viúva e de professora, como que a considerar cada par de olhos, das pessoas ali à roda, a objetiva fotográfica de uma revista ilustrada.

Sentindo que tia Biluca ia dizer qualquer coisa inútil a respeito da morte da mãe, de que já soubera, João despediu-se. Aliás, vinha chegando um bonde e tia Biluca preparava-se para tomá-lo, enrolando cuidadosamente um maço de músicas.

- Tia Biluca...

- Joãozinho...

Ela beijou- no rosto, como a um filho.

***

- Seu Nazaré, atenda aquela freguesa.

Era tia Biluca. Tivera curiosidade de conhecer a loja do sobrinho - explicou. Com um lornhão examinava os calçados expostos em fileira junto ao balcão.

- Você como vai, Joãozinho?

- Eu bem, tia Biluca.

- Qual é o preço destes sapatos de pelica?

E chegando-se a ele, muito em segredo:

- Me arranje um calçado bom e barato.

Joãozinho riu-se.

- Para quanto?

- Aí até uns vinte e cinco mil réis.

- Ih! tia biluca, por esse preço só alcaide.

João desabou um monte de caixas sobre o balcão.

De repente, lembrou-se de que ia ver, de novo, as penras de tia Biluca... Sorriu para si mesmo com amargura. Aquela pobre tia Biluca...

- Madame Guedes, não achei.

Uma mocinha de azul, morena e fresca, entrara de ímpeto pela loja.

- Que pena, Zazá!

João ficou olhando para ela: bonitinha.

- Este é meu sobrinho, Zazá. João Nazaré, de Ponta Grossa.

Ele inclinou acanhado a cabeça, duro como um boneco de loja de roupas feitas.

Ao fundo, o patrão fumava, em silêncio.

- Zazá é uma das minhas melhores amiguinhas.

Zazá sorriu para ele, adoravelmente. Mas João não gostou do sorriso, porque lhe deu a impressão de ser um hábito daquela boca.

***

Ia visitar tia Biluca naquela noite de domingo melancólico. Seu coração estava cheio de lembranças dolorosas e suaves. Ela lhe falaria do passado. Afinal, tia Biluca era do seu sangue.

Estacou diante de um portão. Verificou: era o 307.

Bateu palmas.

Um latido fino tiniu no silêncio do pequeno jardim. Logo, arrastada, uma cadeira denunciou que alguém vinha atender.

- Quem é?

- Eu.

Tia Biluca aparecera numa janela, protegendo os olhos com a mão aberta contra a luz incisiva de um lampião da rua.

- Ah! é você? Até que enfim apareceu! Empurre o portão. Está fechado só com o trinco.

- E o cachorro?

- Não morde. Tigre! Passa pra dentro!

Tigre, ínfimo, como uma pelotinha de lã branca, sacudia-se em festas. Entrou.

Na sala estreita e modesta, com a mobília amarela ponto dons crus no papel cor-de-rosa das paredes, tia Biluca estava com duas mocinhas amigas.

- Meu sobrinho João Nazaré, um moço muito distinto. Minhas amigas Lili e Zazá Fortes. Zazá você já conhece.

Zazá saltou contente, estendendo o braço nu, arqueado, numa afetação de elegância.

- Esqueceu-se de mim, seu Nazaré?

- Não senhora, Conheço da loja.

- Ah! pensei! - acrescentou comum muxoxo faceiro.

Sorria para ele, como a envolvê-lo de uma sedução fatal, contente de ser bonitinha e morena.

Lili perguntou:

- O senhor não sabe quem ganhou hoje no campo do Botafogo?

João teve vergonha de ser pilhado naquela ignorância. Não, ele não acompanhava o futebol. Lili insistiu.

- Estou doente de curiosidade. Se o Flamengo perdeu, sou capaz de chorar. Não me conformo! Ele está tão bem colocado para o campeonato!

Zazá parece que não se interessava muito pelo futebol. Interrompeu a irmã para falar de uma fita estupenda que levavam no Odeon: Oh! se Todas as Esposas Soubessem!

Lá dentro o telefone deu alarme. Tia Biluca atirou-se da cadeira, a correr, sacudindo as suas gorduras redondas.

Durante os minutos de ausência da tia, João ficou silencioso. Olhava, pela janela aberta, invadida por um galho de roseira, o estrelado céu da noite quente.

- Que calor, não, seu Nazaré?

Era Zazá. Ele fez com a cabeça um sinal afirmativo.

Tia Biluca voltava. Inclinou-se, abrindo os braços, teatralmente:

- O dr. Arnaldo está nos convidando para uma frisa no Trianon.

- Bravos!

- Vocês querem?

Que pergunta. Elas não queriam outra coisa.

Lili ponderou, súbito:

- Se soubesse eu teria vindo com o vestido bege.

João puxou do relógio, fazendo menção de retirar-se. Tia Biluca cresceu para ele, muito zangada:

- Você vai conosco, Joãozinho. Ora essa!

- Não posso. Fica para outro dia.

- Ora, Joãozinho, não nos faça isso!

- Palavra, tia Biluca, não posso. Tenho que me deitar muito cedo hoje. Amanhã às cinco e meia devo estar de pé.

Zazá alvitrou:

- Nesse caso, o senhor nos acompanha até a cidade. No mínimo. Se é que a companhia não lhe desagrada...

- Não diga isso, d. Zazá!

E ela fixava nele os olhos grandes e pretos, irônicos, a fasciná-lo com o seu envolvente magnetismo.

Passou-se um quarto de hora de prosa frouxa. Servido um café, tia Biluca e as moças foram pôr pó de arroz e os chapéus. Voltaram de lá de dentro com os beiços vermelhos de tinta, as pestanas negras de carvão.

Saíram. Pela rua animada de risos infantis desceu o grupo. Tia Biluca e Lili à frente: João com a outra em seguida. Iam conversando alto, felizes. Parecia a família de um funcionário público. João teve um certo orgulho em ser confundido, pelos passantes, com o chefe.

No bonde sentou-se junto de Zazá. Logo que o carro partiu, notou que ela o apertava com o joelho. Como ele ficasse quieto, sem coragem de verificar se era de propósito ou não, ela colou-se a ele, desde o ombro até a anca, queimando-o com o seu corpo quente. E suspirou fundo, um suspiro que a agitou toda.

***

No domingo seguinte, João voltou à casa de tia Biluca, à mesma hora da noite. As janelas estavam fechadas. Havia um cadeado no portão.

Bateu inutilmente, um tempo imenso. Tigre também estava ausente.

Estúpido! Devia ter telefonado durante o dia, avisando da visita. Enraiveceu-se contra si próprio. Estúpido!

Um bando de crianças passava em algazarra. Vendo aquele homem teimoso, ali a insistir diante do portão acorrentado, pararam, em silêncio. Depois, uma delas adiantou-se:

- A moça mudou ontem.

Voltou-se para o grupo.

- Mudou-se?

Havia crianças de todos os tamanhos. As menores foram repetindo, cada uma por sua vez, em tons diferentes:

- A moça mudou ontem.

- A moça mudou ontem.

Até que um garotinho de três anos, com uma voz desafinada e gasguita, silabou a custo, gaguejando:

- A mo-ça mu-dou on-tem.

***

Nunca mais soube de tia Biluca.