Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult006d.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/20/07 19:28:35
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto
Rui Ribeiro Couto (4)

Leva para a página anterior
Em 25 de março de 1956, o jornal santista A Tribuna publicou, na página 10 (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

Um menino pobre

Albertino Moreira
(para A Tribuna)

Só mesmo os antigos santistas - aqueles que cursaram as aulas da União Operária e permaneceram morando na velha "Vila Nova" que a Avenida Conselheiro Nébias, vencendo o Caminho Velho da Barra, debalde quis levar até o Boqueirão - somente estes santistas antigos se lembram ainda do menino pobre, moreno e franzino, que saía manhãzinha fria e úmida de sua humilde casa na Rua Amador Bueno e ia, devagar, na direção da escola primária, o Grupo Escolar Barnabé, lá longe, noutra rua.

Ele ia devagar e parava sempre diante das grades altas do Colégio dos Maristas, ali pela Rua da Constituição. Lá dentro, atrás dos muros, os meninos ricos, bem vestidos e rosados, faziam esporte e tinham brinquedos caros. O menino pobre, do lado de fora, alongava os olhos verdes, arregalados e tristes. As suas roupas bastante usadas provocavam olhares de desprezo dos meninos ricos - e ele, sozinho, prosseguia o seu caminho, cabeça caída sobre o peito, afundada em tristeza.

De longe, ao dobrar a esquina, ainda volvia os olhos tristes e ainda ouvia, diluída na distância, a alegre algazarra dos outros meninos, atrás daqueles muros e daquelas altas grades do Colégio dos Maristas.

Muitos anos mais tarde, ele, tirando da vida passada a dolorida expressão da verdade, punha em poesia terna e melancólica toda a história daqueles dias antigos:

"O colégio dos padres era dos meninos ricos.
Todos os dias, a caminho do grupo escolar,
eu passava por lá e espiava entre as grades;
Batinas pretas andavam de ronda, pelos pátios.
No quintal, entre alaridos, batiam bola,
Junto era a Igreja do Sagrado Coração de Jesus.
Aos domingos em filas compridas, como para as aulas,
Os meninos ricos iam para a missa,
Sozinho, num canto do adro, no meio do povo,
eu sofria porque minha família era pobre,
sem pensar que entretanto o Coração de Jesus,
sabedor indulgente dessa mágoa infantil,
preparava em meu coração a riqueza inefável".

Dessa escola modesta e gratuita o menino passou, depois, magro e comprido, para as aulas gratuitas da Escola de Comércio José Bonifácio. Ia estudar a regra de três, os juros simples e compostos, os descontos por dentro e por fora, e como se deve abrir, em caligrafia bonita, os títulos do Diário e do Conta-Corrente.

Dali saiu com o diploma de guarda-livros, e a fama fácil de bom orador em arrancadas hugoanas de retórica.

Conheci-o em São Paulo, no primeiro ano de Direito no velho casarão do Largo São Francisco, e nos tornamos amigos inseparáveis desde os primeiros dias.

Rui Ribeiro Couto tinha ido de Santos e nada conhecia da capital.

Talvez, por isso mesmo - tímidos e medrosos - nos entendêssemos melhor que com os outros colegas numerosos e arrogantes, outros tantos meninos-ricos, no bem-estar de seus palacetes, no pomposo bairro dos Campos Elíseos, nos belos prédios das avenidas novas: Paulista, Higienópolis e outras assim.

***

Não saberei dizer o que está bem dentro de mim, da minha lembrança viva e presente. Vínhamos de caminhos diferentes: eu do sertão, na sua rudeza e brutalidade; ele, dum centro comercial, dum porto de mar, duma cidade grande. Se tudo, para mim, era grandeza e mundos intransponíveis, para ele, por sua condição de moço pobre, pela humildade de sua infância, tudo tinha sido negado, sem razão. E daí a sua melancolia, a tristeza permanente dos seus olhos, aquele amargor que se dissimulava, manso e cheio de ternura, através da poesia, toda inspirada na bondade inata do coração.

Essa mágoa infantil preparava em seu coração a riqueza inefável.

Daí, a sua poesia sem revolta e sem arremessos.

"Minha poesia é toda mansa.
Não gesticulo, não me exalto...
Meu tormento sem esperança
Tem o pudor de falar alto".

A compreensão da vida na sua intimidade, na sua profundeza, na sua fatalidade. A compreensão de que é assim mesmo que se há de viver e que não adianta lastimar, não adianta chorar mostrando as lágrimas; e sofrer para si mesmo, fazer do sofrimento a razão principal de viver e da dor tirar o seu próprio consolo, e encontrando a felicidade e a paz no fundo de todas as mágoas:

"Põe-me os olhos rasos d'água
essa dor mansa e pungente.
Mas trago-a sorrindo... Trago-a
como um menino doente,
feliz de mostrar à gente
o dodói da sua mágoa...".

Foi assim que ele se exprimiu nos seus primeiros livros: Jardim das Confidências, Poemetos de Ternura e Melancolia, Canções de Amor.

A esse tempo - pouco antes ou pouco depois - (a ordem cronológica não vem ao caso) se engalfinharam os modernistas da Paulicéia, na luta para destruir a ordem estabelecida nas letras, parada e estratificada nas dobras espessas do parnasianismo, do classicismo, ou doutras coisas assim. Mas havia somente barulho, exibição de tutanos literários e o bate-boca atrevido.

Ribeiro Couto realizou paralela e simultaneamente a reforma integral da poesia; passou-a a limpo; libertou-se da métrica; criou a sua expressão, não se filiou a nenhuma escola; sacudiu para longe qualquer influência alheia - viesse esta de Cesário Verde ou de Antônio Nobre - e, dentro de si mesmo, de seu mundo interior, menino-moço-varão, ofereceu à sua terra e à sua gente a obra mais bela e perfeita da poesia brasileira.

E pôde, ao fim, ou ainda em meio-caminho, brincar de dizer a verdade aos outros poetas:

"Poetas há
que não compreendem nada fora do que eles
chamam escola.
Fazem versos como remendões batem sola.
Batem sola! Batem sola!
E começam: "O céu, imenso, a arder, é uma
imensa corola".
ta ra ta ra ta ti, ta ra ta ra ta tá".

Depois de fundado o seu reino interior, de criado o domínio sobre si mesmo, dono exclusivo de suas dores e de suas alegrias, de sua vida inteira, Ribeiro Couto abriu a alma, encontrou o homem das multidões, viu a paisagem de seu país, os arrabaldes das cidades pobres, a pobreza em redor do mundo, as crianças que nunca tiveram babás nem brinquedos caros e até os bichos pequeninos e rasteiros, cuja vida não dura um dia só.

Mas, uma coisa eu quero não esquecer: Ribeiro Couto, ausentando-se da sua cidade natal, levou-a consigo, ou nela está presente sempre.

Em qualquer de seus livros - romances, contos, crônicas, poesias - a cidade de Santos é lembrada:

"Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques.
Os pesados carretões de café
sacudiam as ruas, faziam trepidar o meu berço.
Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
deixava longas ressonâncias na minha rua.
Brinquei de pegador entre os vagões das docas.
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.
As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite
faziam sonhar (tantas mercadorias!)
e me ensinavam a poesia do comércio.

Sou bem teu filho, ó cidade marítima,
tenho no sangue o instinto da partida,
o amor dos estrangeiros e das nações.

Oh, não me esqueças nunca, ó cidade marítima,
que eu te trago comigo por todos os climas
e o cheiro do café me dá tua presença".

No próprio título de um de seus livros - Cancioneiro do Ausente -, revela ele o íntimo sentimento de saudade de sua terra, o seu desejo de não se apartar de sua cidade, nesta ou noutra vida:

"Ó porto em que nasci! Eu era menino
quando uma vez me viste, olhos no mar,
pedir ao mar incerto o meu destino.

O mar ouviu-me. Meu destino é errar.
Por onde eu vá, seguindo esse destino,
entre eu e minha mãe existe o mar.

Enfim, se o barco em que eu voltar um dia
deva ir ao fundo, que suceda tal
em frente ao porto a que eu tão bem queria.

E que meu corpo inerte, no balanço
da onda encontrando o embalo maternal,
possa no mesmo porto achar descanso".

E lembrando-se de Santos, invoca a sua Padroeira e, pedindo, faz promessas:

"Não me abandones, Nossa Senhora do Monte Serrat,
devoção da minha família,
Padroeira da cidade comercial
e das tripulações em demanda do porto;
Ampara a todo os que sabemos apelar
com os olhos presentes ou a memória aflita
para o teu santuário no alto do morro,
tão branco, a surgir dos bananais da encosta!
Possa eu ainda, por muitos anos, piedosamente,
no dia 8 de dezembro levar-te uma vela, no meio do povo,
subindo a pé o monte exaustivo,
como no tempo da minha infância,
oh ingênua adoração do mistério infalível!"

***

É desse menino pobre, hoje embaixador do Brasil, num país lá longe, que venho falar aos meninos de agora, ricos ou pobres, alunos do Colégio dos Maristas ou dos grupos escolares do Marapé ou do Morro da Penha, no dia do aniversário de A Tribuna.

Ele, também, colaborou nestas colunas, suas crônicas semanais vinham sob o título "De assunto em assunto"; e subia, timidamente, estas escadas, com suas tiras de originais bem guardadas. Talvez não contasse ainda 15 anos e sentia-se feliz em vê-las salientes, entre as colaborações graúdas dos maiorais do jornalismo daquele tempo.

Construiu sua própria vida, traçou e venceu a sua carreira; é uma criatura feita por si mesma: "avec mes pates", como ele próprio teve ocasião de dizer, em forma bizarra, a uma holandesinha loira, na Holanda, onde ele representava o Brasil.

Não o aponto às gerações novas, que não acreditam em nada. Reivindico-o para a minha própria geração de homens maduras que nada fizemos, e que perdemos o nosso tempo discutindo política, jogando futebol ou falando mal da vida alheia.

Dentre os 236 primeiros-anistas naquele ano de 1915, acampados na ampla Sala n. 3, sob as arcadas venerandas, foi o único que começou e atingiu o fim, numa linha segura e firme.

E é por isso que, num dia de festa para este jornal, vale a pena lembrar aos santistas antigos o nome de Rui Ribeiro Couto.

Leva para a página seguinte da série