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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 253)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 28 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Alegria de moça

Lydia Federici

Era uma moça. Uma meia moça. Pois, atrás da caixa, era só da cintura para cima que a gente a via. Na verdade, para noventa entre cem pessoas que iam pagar as notas, ela não passava de um par de mãos. Mãos que recolhiam o dinheiro. Mãos que corriam o carimbo sobre a fatura. Mãos que davam o troco. E só. Nada mais que um par de mãos.

Para os que, gentilmente, a cumprimentavam, respondia um "bom dia" ou um "boa tarde" quase ciciado. Parecia ter medo de falar. Tímida, apagada. Absolutamente anônima. Só uns poucos, que se davam ao trabalho de lhe olhar o rosto, é que descobriam o seu permanente meio sorriso. Sorriso de Gioconda. bom de se ver. Calmo. Profundo. A refletir a paz triste de sua alma.

Sendo, portanto, um par de mãos, um cicio de voz, um sorriso sossegado, por que razão admirar-se de não a reconhecer no reduzido saguão do Coliseu? Numa noite de concerto? Que era uma carinha conhecida, era. Quanto a isso, não havia dúvida. Pois se sorrira e fora a primeira a cumprimentá-la. Mas quem seria ela?

A senhora, acompanhada pelo marido, entrou na sala com uma interrogação a verrumar-lhe a mente. Como estava perdendo a memória. Não conseguia descobrir quem era. De onde conhecia aquela moça sorridente. Tão feliz e radiosa na simplicidade do vestidinho estampado.

Por coincidência, a moça sentou-se na fileira da frente. Duas poltronas afastadas de onde eles se haviam afundado. Olhando, de lado, a cabeça tesa, a senhora não podia esquecer de querer lembrar-se. Quem era aquela moça? Parecia tão contente. Tão expectantemente feliz. Não conseguia lembrar-se dela.

Não se lembrava e não se lembrou. Mas logo esqueceu essa pequena luta. Por que os dedos maravilhosos de Madalena Tagliaferro arrancavam-na da sala abafada? Transportando-a para um reino distante? Onde sons evocavam e produziam sonhos de beleza? Sim! Mas principalmente porque, ao arrebatamento que ela sentia, juntou-se a visão do enlevo vivido pela moça desconhecida.

Para a senhora, a noite resumiu-se em duas coisas: ouvir a música de Madalena. E ter olhos para ver o efeito da arte da grande pianista sobre aquela figura sentada ali ao lado. Embora só lhe descobrindo o perfil, aquele meio rosto mostrava a expressão de alguém que, pisando a terra, subia, por uma estranha magia, aos céus. Gozando-lhes as maravilhas. Havia, ali, enlevo de mãe a ninar o primeiro filho. A descoberta do amor. O deslumbramento de uma alma apaixonada. Luta. Arrebatamento. Glória!

Ouvindo e vendo, vibrando, sentindo, a senhora, sem perceber,chorou, pela primeira vez, as mesmas lágrimas que desciam, docemente, pelo rosto da moça. Bateu as mesmas palmas arrebatadas. Agradecendo à artista as horas de emoção. E que emoção.

Só muito tempo depois, na cidade, diante da caixa, é que ela soube quem era a moça. Como, conversando, soube, também, que aquela era sua única distração. Sua única alegria na vida pobre e difícil.

Por essa alegria, mensalmente renovada durante 14 anos, sobre os que apreciam a arte, desejamos ao Centro de Expansão Cultural, no seu aniversário, mais 14 anos de trabalho idealístico. E mais 14 vezes 14 anos. E mais não será preciso dizer. Ou sim?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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