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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 242)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 16 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Gente decidida

Lydia Federici

Viúva, com quatro filhos, quando percebeu que a terra, mal e mal, não os deixava morrer de fome, não teve dúvidas. Largou-a. E, por aqui arribou. Arranjou um teto. Em casa de parentes. Um quarto pequeno. Um pedaço de corredor. Uma boca de fogão.

No corredor, numa cama estreita, dormia o filho mais velho. Rapaz de 14 anos. No quarto, na cama de casal, ela recebia socos e pontapés dos outros três filhos. E olhe lá! Deus louvado por isso tudo. Que nem isso poderiam ter encontrado.

No segundo dia de terra nova, o rapazinho começou a trabalhar. Em construção. Com 14 anos? E então! Quem, havia já quatro anos, carregava pedras em pedreira, por que não lidaria com tijolos e caçambas de massa? Até que o serviço, aqui, era bem mais suave. Uma brincadeira quase.

A mãe, logo, logo, empregou-se também. Em casa de família. Criada para todo o serviço. Que fazia com disposição e alegria. Uma moleza. Uma verdadeira moleza. Para quem calejou as mãos num rabo de enxada, cabo de enceradeira é algodão. Macio e leve. E leve também era a vassoura. E escova e o esfregão dos sábados. Tanque? Com água correndo a um palmo da mão? Duro era lá. Sem sabão. Caminhando um quilômetro até o rio. Que a água do poço mal dava para beber. Aqui, apesar de rodar das 8 às 17 horas, nem pedindo a Deus encontraria coisa melhor. Valera a pena ter saído da sua terra. Com o que recebia, mais o ordenado do rapaz, em três tempos começaria a encher o pé de meia. O estômago da família era pequeno. Saciava-se com pouco.

Mas havia uma coisa que a pobre viúva teria que providenciar. Assim que visse a cor de uma nota sobrando. Algo de realmente indispensável. Uma outra cama. Dormir, em quatro, embora numa cama de casal, não era dormir. Nem descansar Era acumular, deitada, mais canseira. Até quando aguentaria?

Um belo dia, a patroa, quando soube, por uma conversa, que sua empregada, à noite, era colchão de três crianças irrequietas, lembrou-se de uma cama encostada no quarto de despejo.

"Se você quiser, ela tem até colchão. Pode levar".

A viúva sentiu as pernas lhe bambearem. Seria possível tanta graça? Dava-lhe mesmo? Cama mais o colchão?

"Claro que sim. Quando você quiser, é só levar. Arrume alguém, um caminhão, que carregue e pronto. A cama é sua". Repetiu a patroa, a rir.

Na hora de ir embora, a empregada, com o seu "até amanhã, se Deus quiser", avisou à patroa que ia carregar o que lhe haviam oferecido. Armou a cma. Amarrou o colchão estendido sobre o estrado.

"Como é que você vai levar isso?", admiraram-se. A mulher sorriu. Da saia de trabalho fez um rodilho. Equilibrou-o sobre o cocuruto. Levantou a cama. Ajeitou-a sobre o rodilho. E, feliz, bateu do canal 5, junto à praia, até o fim da Pedro Lessa. Desde essa noite, consegue dormir e descansar.

Deus! Como há gente decidida neste mundo. Nós, hein?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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