Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d091.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 08/15/15 15:16:19
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 91)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 13 de abril de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Sonhos na Pedro II

Lydia Federici

É rua sem árvores a D. Pedro II. Como quase todas as ruas da cidade, infelizmente. Paralelepípedos gastos escurecem o chão, mesmo à luz forte do sol. Vestem-na, de ambos os lados, paredes de prédios velhos. Marquises sujas enfeiam-na. Enfeitam-na o dourado das placas comerciais e os anúncios coloridos de lojas.

Não há sossego na D. Pedro. Um buzinar constante, nas suas poucas esquinas, põe todo mundo a correr. Os passeios estreitos são pistas de corrida. Quem para diante das vitrinas, se não estiver bem colado aos vidros, vai levando empurrões. Milhares de empurrões. Com uma centena, apenas, de desculpas andantes.

Ontem de manhã, um pequeno pedaço daquela rua se transformou. Do alto-falante de uma casa de discos, quase na esquina da Praça Mauá, uma revoada de pássaros cantadores musicou a rua. Ficou poético aquele canto comercial. Calmo. Sonhador, Pouco a pouco, as paredes dos prédios sumiram. Encobertas por árvores. O chão ficou cheio de folhas. O cheiro bom da mata espalhou-se pelo ar. Gorjeios e trinados se sobrepõem ao rascar dos pneus. E a rua alcançada pelo malhar metálico e sonoro da araponga se põe a sonhar.

Homens e rapazes, apressados, olham o céu. Diminuem os passos, consultando o relógio. Param. E ficam a ouvir. Um, de camisa escura, estremunhado, procura, no alto, em que terraço se poderia ocultar a gaiola do sabiá. Percebido o engano, sorri, encosta-se à parede, esquecido de tudo. Não vê a preta gorda, de carapinha branca, que quase despenca do ônibus. Não vê as moças que passam, apressadas, conversando muito com as mãos. Está na mata fresca e cheirosa. Sozinho. Procurando, nas árvores engalhadas, as cigarras que saúdam o sol.

Poucos são os homens que, ouvindo o canto das aves, passam sem diminuir o passo. Há chamados de infância nos assobios aflautados, nos pios em escala ascendente, inidentificados mas mágicos. Notas límpidas de clarim, gritos desesperados, chamados meigos e suaves, fazem homens e rapazes lembrar-se de gaiolas e alçapões. Até o coaxar das rãs lhes arranca um sorriso embevecido. Sonham com árvores e matas. Lembram-se de excursões às serras. Sentem, sob os pés, a maciez de folhas secas. Bebem gotas de orvalho. O chão escuro e úmido é uma renda de sol. Sentem na mão, o palpitar medroso de uma pequena avezinha, quente macia. O canto dos pássaros, na rua apressada, faz os homens sonharem.

E as mulheres? Elas, as grandes sentimentais, só se enternecem, naquela esquina, com o "nunca mais" e o "para sempre" dos boleros aveludados. Nesses minutos de verdadeira magia, em plena evocação da natureza, veem, do outro lado da rua, na vitrina da joalheria, broches, anéis, brincos e relógios de ouro. Isso sim é que as faz por os olhos em branco.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série