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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - VILA SOCÓ - (1)
A tragédia, na época em que ocorreu

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Uma das maiores tragédias de Cubatão, senão a maior, foi o incêndio de um oleoduto da Petrobrás que passava sob uma favela, Vila Socó, destruída pelas chamas com a morte de cerca de uma centena de pessoas, em 24/2/1984. A história foi relatada na primeira edição da revista Brasil Extra (Cia. Editora Joruês, São Paulo/SP), lançada em agosto de 1984:

Página inicial da matéria, com fotos de Maurício Simonetti e Wilson Melo

SOCÓ
Viveram como bichos,
morreram como bichos

Cubatão, o maior ICM per capita do País. A maior miséria per capita. Barracos, palafitas, favelas. Numa delas, deu-se o inferno. O inferno de Vila Socó. Um braço de mangue, palafitas em cima, 6 mil habitantes. Embaixo, uma ameaça: um oleoduto da Petrobrás comido pela ferrugem. O repórter Bernardo Kucinski reconstituiu a tragédia e constatou: eles continuam sendo tratados como bichos.

O oleoduto estourou à meia-noite de sexta-feira, 24 de fevereiro. Madrugada de maré baixa. à uma e meia, o mangue estava tomado por mais de meio milhão de litros de gasolina de exportação, com alto poder calorífico. O incêndio explodiu sabe-se lá como, em labaredas que avançavam aos saltos calcinando as palafitas, derretendo ferros, detonando bujões de gás.

Sombras incendiadas atiram-se na lama, tentando inutilmente a vida. Tochas humanas. No lado seco da favela, grupos se fazem e desfazem em pânico. Um vulto de bicicleta acelera para o extremo oposto da favela. É o padeiro Azenaldo, companheiro de Ana Nunes, mais antiga moradora da Vila. Azenaldo Ribeiro, 27 anos, nordestino como a maioria ali. Tinha acabado de deixar a padaria:

- Um barraco desses não levava mais de um minuto para queimar.

O barraco de Azenaldo - "milagre" - escapou. Salvaram-se todos, inclusive o nenê de colo. Agora querem fugir de Vila Socó. Fugir da maldição. Vai acontecer tudo de novo.

Toda madrugada um ônibus pára no "último ponto". Mas não há ônibus nenhum. Noite após noite, Azenaldo escuta as marteladas de Manuel Lagoa, o carpinteiro que construiu muitas das palafitas e morreu queimado com a mulher Amélia e os 5 filhos, abraçados. O incêndio queimou 432 barracos, identificados pela reconstituição das ligações de água e eletricidade. Mas quantos morreram?

A Petrobrás diz que pagou 87 enterros, admite que há mais 6 desaparecidos. O cemitério registra 84 sepultamentos. O laudo do Instituto Médico Legal fala em 92 mortos. A Prefeitura relaciona 90, incluindo 3 ignorados pelo IML. O povo da Vila não acredita, devem ter morrido mais de 100, talvez 120. Isso se verá.

Pelo menos 508 pessoas, entre as quais 450 crianças, devem ter morrido em Vila Socó, segundo os promotores Marcos Ribeiro de Freitas e José Carlos Pedreira Passos. Em muitos pontos a temperatura ultrapassou os mil graus e muitos corpos foram reduzidos a cinzas.

(De uma notícia de jornal)

Dojival Vieira, mulato forte, jovem. Vereador pelo PT na Câmara Municipal de Cubatão. Denuncia a conivência da Prefeitura com a Petrobrás, em prejuízo das vítimas.

- Não foi feito um inquérito. No domingo, o prefeito e Shigeaki Ueki brigavam abertamente, mas depois se acertaram. Os sobreviventes foram confinados, proibidos de receber visitas. Daí aceitaram as condições impostas pela Petrobrás.

Há um agito na Vila Socó. Quem ficou quer sair: 64 famílias, que pedem Cr$ 4 milhões para cada barraco removido.

O juiz Décio Leme de Campos Júnior, de Cubatão, aceitou a denúncia contra o presidente da Petrobrás, Shigeaki Ueki, e mais 16 funcionários da empresa estatal. Os interrogatórios já estão marcados a partir de 8 de agosto.

(De uma notícia de jornal)

A denúncia dos promotores José Carlos Pedreira Passos e Marcos Ribeiro de Freitas pega em cheio a cúpula da burocracia, que negligenciou na manutenção do oleoduto, e não apenas os funcionários que abriram as válvulas erradas na noite do inferno.

O bacharel Shigeaki Ueki, presidente da Petrobrás, assinou o sintomático ofício que claramente previu a singular tragédia. E, na empresa, tinha amplos poderes para atuar (...) mas nada vez. Agiu portanto com reiterada e múltipla negligência diante de perigo que expressamente anunciou...

(Da denúncia dos promotores)

- Isso é um absurdo! Incluir nosso presidente no processo? Olha, tem um monte de comuna atrás disso.

Escritório da Petrobrás, Rua Barão de Itapetininga, São Paulo. Salas grandes. A voz vem dos fundos, alta. Na sala da frente, o engenheiro José Boarin, chefe do escritório, faz as contas. As indenizações de 4 milhões por barraco destruído e mais o valor dos pertences foram pagos sem muita discussão, ainda sob o impacto do incêndio, quando Ueki desceu a Cubatão.

Pelas vidas perdidas, a Petrobrás oferece agora, na maioria do casos, menos do que pagou por barraco. A empresa nega qualquer culpa, oferece as indenizações como proposta de acordo amigável. Se rejeitada a proposta, vai tudo a juízo. A Justiça estadual nomeou dois promotores para ajudar os sobreviventes. Em alguns casos, eles recomendam que a oferta da Petrobrás seja aceita.

O engenheiro Boarin está proibido de falar à imprensa. Mas não esconde sua indignação com os promotores:

- Há interesse em incriminar a Petrobrás. Qual foi a única área de sucesso deste governo? Isso mostra tudo.

Diz que a empresa não vai pagar um tostão às famílias cujos barracos ficaram inteiros e que querem sair de perto do oleoduto.

- Tem gente querendo aproveitar!

Faz uma revelação:

- Só há 43 indenizações por morte a pagar, num total de 294 milhões de cruzeiros. As outras 40 vítimas são de famílias que morreram inteiras, não sobrou ninguém para pedir a indenização...

O enquadramento de Ueki irritou Brasília. Tentou-se afastar os promotores. Em vão. Depois outras intimidações.

Ofício 0984
Senhores promotores,
Por ordem do Senhor procurador-geral da Justiça, ficam Vossas Excelências cientes de que devem abster-se de qualquer entrevista, comentários ou manifestações relativos à ação penal ajuizada na Segunda Vara de Cubatão sobre o incêndio ocorrido na Vila Socó.

Prefeitura de Cubatão.

Duas horas de espera. O encarregado do Cemitério Municipal havia se negado a dar qualquer informação. Ordens do Dr. Pedro, secretário de Obras e chefe da Comissão Municipal de Defesa Civil. Informações só com o secretário da Saúde, Dr. Luís Camargo, militar da reserva, duas vezes prefeito de Cubatão. Diz que a Prefeitura não tem uma relação de mortos. Dá vários telefonemas, como se esforçando para localizar a relação. Por que tudo tão difícil? Algo a esconder? Mania de autoritarismo? Cubatão é área de Segurança Nacional.

Das mãos constrangidas do Dr. Luís surge a primeira lista de mortos. Contém 90 nomes, entre eles 16 crianças de até 3 anos. Incluídas as de até 7 anos, o total vai a 27. A relação foi montada com base nas declarações de parentes e vizinhos. Isso já dá um mínimo de 103 mortos (os 87 enterros pagos mais as 16 crianças de até 3 anos). Mas pode ser mais, muito mais.

Cemitério Municipal de Cubatão


O administrador nega informações, sobre os mortos de Vila Socó. Muda completamente de atitude com a exibição da Relação de Pessoas Declaradas como Falecidas. Pede uma cópia, para "acertar" o seu livro. Quer dizer, 5 meses após a tragédia, a Prefeitura ainda não havia enviado a sua lista!

Há várias contradições no cemitério. Não há a menor confiabilidade. Alguém informa que foram 89 caixões, não 84 nem 86.

Um corpo ao ar livre, exposto por uma ou duas horas a mil graus centígrados, vira cinza. 

Um corpo de criança é facilmente incinerável em temperatura acima de mil graus em cerca de uma hora.

Um pequeno consultório médico em Santos. O Dr. Walter Ribeiro Diniz fecha os livros de Medicina Legal. Ele foi um dos que assinou o laudo do IML, que afirma não terem sido encontrados os corpos de crianças com menos de 7 anos. Dr. Walter foi um dos primeiros médicos a chegar ao inferno.

- Quando o fogo terminou, fomos ao local dos gritos. Só havia cinzas.

Mais de dez pessoas ficaram feridas, inclusive crianças recém-nascidas, em conseqüência do gás lacrimogêneo atirado por mais de cem policiais militares e agentes da Polícia Federal, ao final da noite de ontem, para reprimir a manifestação dos moradores da Vila Socó contra a Petrobrás, que não concordou em pagar Cr$ 4 milhões de indenização por barraco que escapou do incêndio ocorrido no dia 25 de fevereiro.

(De uma notícia de jornal)

Vereador Dojival Vieira:

- Há informações de que o secretário estadual Roberto Gusmão fez um acordo. O governo federal concorda com o afastamento do prefeito, desde que seu substituto seja um homem de confiança.

No fórum de Cubatão, tudo indica que houve acordo. A prefeitura e a Petrobrás estão sendo forçadas pelo governo estadual a financiar a construção de 252 apartamentos para abrigar as famílias de Vila Socó.

Fórum de Cubatão


O procurador José Luís recebe sobreviventes. Mulheres magras, com pequenos pedaços de papel tentando sacar 20 ou 30 mil cruzeiros da poupança. Os documentos também foram destruídos. Um homem forte, 30 anos, perdeu a mulher e os dois filhos. A Petrobrás pode simplesmente não pagar nenhuma indenização. Por quê? Procurador José Luís, um dos designados para orientar as famílias:

- Para crianças até 12 anos a Petrobrás não oferece indenização, pois alega que não eram produtivos. Para filhos maiores de 25 também não, pois alega que normalmente seriam independentes. E para os maiores de 12, oferece de meio a um terço do que ganhariam até completar os 25 anos.

Os presidentes da Petrobrás, Shigeaki Ueki, e da CESP, José Goldemberg, assinaram no Palácio dos Bandeirantes convênio que irá definir as bases para a criação de uma empresa, destinada a incrementar a produção e distribuição de gás no estado de São Paulo. Durante a cerimônia foram assinados ainda três outros contratos.

(Notícia de jornal)

Entre os contratos, um financiamento da Petrobrás para o governo do Estado comprar asfalto, no valor de US$ 30 milhões, praticamente sem juros e prazos a perder de vista. Quatro dias antes, a Petrobrás tinha entrado com habeas-corpus no Tribunal de Alçada, pedindo o trancamento da ação penal. O vice-presidente do Tribunal, Alberto Silva Franco, mandou suspender o interrogatório de Ueki, mesmo antes do julgamento pleno do pedido. É normal?

Resposta de um membro do Judiciário:

- O normal é o processo correr e, uma vez julgado o habeas-corpus, ser trancado, se deferido. Agora, no caso de ricos e poderosos...

Ueki joga em todas as frentes. Uma vasta operação é organizada para inverter o noticiário negativo: passamos a produzir 500 mil barris de petróleo por dia. Que chamem os jornalistas. A operação fracassa porque o avião cai. Mortos todos os jornalistas. Fica pior ainda a imagem na imprensa.

O presidente da Petrobrás será o novo embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Européia. O comunicado foi feito ontem em Brasília pelo presidente Figueiredo.

(Notícia de jornal)

Epílogo


Embaixadores só podem ser processados e julgados pelo Superior Tribunal Federal. E só podem ser interrogados por carta precatória.

Embaixadores não são bichos.

Foto de Juca Martins, publicada com a matéria

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