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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - Poluição
O vale da morte (5)

No governo do presidente Juscelino Kubitschek (que prometeu fazer "cinqüenta anos em cinco") e principalmente no período militar pós Revolução de 1964, a industrialização do Brasil foi acelerada, com vistas à exportação de produtos e substituição de importações. Por volta de 1970, começava o chamado "Milagre Brasileiro", do desenvolvimento econômico e das grandes obras ("faraônicas", como se dizia então).

Mas, havia a outra face da moeda, particularmente sentida em Cubatão, segundo relato incluído na enciclopédia Retrato do Brasil (Editora Três/Política Editora, São Paulo/SP, volume I, 1985), e que só começou a mudar pouco depois de tragédias como a das crianças sem cérebro e o incêndio na Vila Socó forçarem uma mudança de atitude, com o início do controle da poluição industrial e a remoção das favelas de Vila Parisi e Vila Socó:

Cubatão: dezenas de indústrias modernas, bilhões de cruzeiros arrecadados
e a maior poluição do mundo
Foto publicada com a matéria

AMBIENTE/POLUIÇÃO: a história de Cubatão

As duas caras do milagre

No governo JK são armadas as equações de uma espécie horrenda de laboratório químico e social: o parque industrial e humano de Cubatão

No começo do século (N.E.: século XX), Cubatão, a cerca de 40 quilômetros da cidade de São Paulo, era um lugar bonito, coberto de matas. Tinha imensas plantações de bananas, olarias e engenhos. Oito décadas depois, em 1984, havia se transformado em um dos mais ricos e modernos centros industriais do País. Em compensação, era um retrato fiel do Brasil: o progresso e a riqueza se confundiam com a pobreza extrema, doenças e insegurança.

Com uma área de apenas 160 quilômetros quadrados, Cubatão tem um poderoso parque fabril, formado por 23 indústrias de ponta, entre as quais uma refinaria, uma siderúrgica, nove fábricas de produtos químicos e sete de fertilizantes.

O valor total da produção industrial dava ao município o quarto lugar dentro do Estado de São Paulo. Em 1983, Cubatão arrecadou 100 bilhões de cruzeiros em taxas e impostos, 76 bilhões vindos apenas da indústria. As exportações atingiram a casa de 500 milhões de dólares - cerca de 2% das exportações de todo o País.

"Os trabalhadores eram tratados como piolhos do regime" - Mas a cidade não compunha um quadro social à altura dessa pujança. Até 1984, com seus 79 mil habitantes, Cubatão tinha uma rede de esgotos que não chegava a um quilômetro de extensão. O descaso geral em que vivia a população operária nos anos 80 foi definido de forma contundente pelo geógrafo Aziz Ab'Saber, da Universidade de São Paulo: "Os trabalhadores que chegavam em busca de emprego eram tratados como piolhos do regime, sem qualquer assistência, num sistema subumano".

Na década de 70, os números sobre acidentes de trabalho eram geralmente altos, no Brasil. Atingiam, no entanto, em Cubatão, cifras espantosas. Em 1975, a População Economicamente Ativa (PEA) brasileira era de 36 milhões de trabalhadores, registrando-se quase dois milhões de acidentes de trabalho. Uma média de 5,11%. Em Cubatão, a média era 60%. Em 1979, a média nacional caíra para 3,18%, mas a de Cubatão continuava perto de 31,18%, dez vezes maior.

Mas o grande recorde do município, que o tornaria famoso no mundo todo, foi obtido na área de saúde. Embora o Brasil fosse um dos campeões mundiais de incidência de tuberculose, Cubatão era capaz, em 1979, de superar em mais de quatro vezes as cidades vizinhas no número de doenças respiratórias.

Quase 1,5% da população eram deficientes físicos ou mentais. Em seis meses, no período de outubro de 1981 a abril de 82, nasceram 1.868 crianças: 37 estavam mortas; outras cinco apresentavam um terrível quadro de desenvolvimento defeituoso do sistema nervoso; três não chegaram a formar um cérebro (anencefalia); e duas tinham um bloqueio na estrutura de células nervosas que liga o cérebro ao resto do corpo através da espinha dorsal (fechamento do tubo neural).

Bairro de Vila Parisi, conhecida como o Vale da Morte.
Nos bairros em torno das indústrias de Cubatão (SP) a população convive com 75 tipos diferentes de poluentes, responsáveis pela alta incidência de doenças respiratórias. 
Além disso, na cidade ocorreram vários casos de malformação do organismo 
e do nascimento de crianças sem cérebro (anencefalia)
Foto publicada com a matéria

Cubatão emite cerca de 30 mil toneladas de poluentes, por mês - Em Cubatão, embora os estudos não fossem definitivos, a anencefalia parecia ligada à poluição do ar e das águas pela fantástica concentração industrial da cidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os dez casos de malformação registrados em Cubatão de janeiro a outubro de 1981 representavam uma taxa 15 vezes maior que a média de qualquer outro município do mundo de mesmo porte. O Hospital Oswaldo Cruz, um dos dois grandes centros médicos da região, afirmava nesse mesmo ano ter registrado 41 casos de malformação nos últimos 2.000 partos realizados.

Segundo estudos da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo (Cetesb), em 1980, o complexo industrial de Cubatão estava emitindo cerca de 30 mil toneladas por mês de material poluente, apenas no ar, isto é, gases e particulados. Estes últimos são formados por corpos tão pequenos que já não se pode dizer se são sólidos, líquidos ou gasosos. Partículas maiores, sólidas, também eram emitidas, ainda segundo a Cetesb, à taxa de um milhão e meio de toneladas ao ano. Estas partículas depositavam-se no solo, nos rios e no mangue. No total, havia 75 tipos de poluentes principais constantemente sendo emitidos pelas fábricas, inclusive nos fins de semana.

As substâncias poluentes não são perigosas apenas por si mesmas, mas tendem a se combinar e se reorganizar, dependendo das condições de umidade do ar e outros fatores. O resultado é um verdadeiro laboratório químico ao natural, onde podem formar-se substâncias ainda mais perigosas que as originais. Cabia à Cetesb efetuar as medidas da poluição em Cubatão. Entre 1970 e 1980 esta companhia promulgou anualmente mais de uma dezena de advertências e multas contra as empresas que violavam os níveis máximos de emissão de poluentes. Mas seus instrumentos careciam de precisão e seus dados não eram geralmente considerados confiáveis por outros pesquisadores preocupados com o inferno da cidade.

Em termos de quantidade, o pior poluente em Cubatão são os óxidos de enxofre, cujas moléculas são formadas por átomos de oxigênio e de enxofre. Combinando-se com a umidade da atmosfera, isto é, com o hidrogênio da água, eles transformam-se em ácido sulfúrico. O ácido sulfúrico condensa-se na atmosfera e cai sob a forma de "chuva que queima", muito conhecida dos moradores de Cubatão.

Mas a origem industrial da maior parte dos poluentes, nessa época, ainda continua um mistério, assim como o seu destino depois das emissões. E isso, é claro, prejudica a busca de responsáveis pelos crimes ecológicos e contra a saúde. Também impede que se achem as causas específicas das enfermidades que grassam na área.

O "laboratório químico" em que se transformou a cidade tem outras repercussões no ambiente: a poluição enreda-se de maneira profunda e sutil por toda a "cadeia" ecológica. Um poluente passa da água ou do ar para as plantas e para os animais e daí para o homem. Vila Parisi - um bairro operário de 40 quarteirões construídos sobre o mangue, considerado pela ONU o pior ambiente no mundo para a vida humana - mostra a "contaminação" ecológica de Cubatão.

O aspecto de Cubatão começou a mudar em 1955, quando entrou em operação a refinaria Artur Bernardes. Antes disso, havia ali escassa concentração industrial. A primeira indústria da cidade foi a Companhia Curtidora Marx, instalada por alemães em 1912, fechada em 1914 e reaberta por brasileiros em 1918. A Light chegou em 1926. Instalou uma primeira usina nesse ano e depois mais duas, em 1952 e 1955. Mas o clima - quente e úmido - e a topografia da região não eram adequados à instalação de núcleos urbanos. Dentro de seu perímetro, Cubatão tinha 58% de morros e serras, 24% de mangues.

Em Cubatão, muitos dos operários das indústrias vivem em locais como Vila Socó, uma favela construída sobre os dutos de combustível da Petrobrás, parcialmente destruída por um imenso incêndio em junho de 1984, quando morreram centenas de pessoas

(N. E.: na verdade, o incêndio ocorreu em 24 de fevereiro de 1984)
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O "laboratório químico" começou a ser montado no governo JK - O que determinou a instalação da refinaria, no entanto, foi a excelente localização da área no ponto de vista estritamente econômico: próxima ao porto de Santos e de uma grande metrópole - São Paulo - e podendo valer-se de vias de transportes entre os dois pontos estratégicos. A ferrovia Santos-São Paulo já existia desde o começo do século e a rodovia Anchieta começou a ser construída em 1938.

O "laboratório químico" começa a ser montado no governo JK. Logo após a refinaria, instalou-se a Alba (1956), a Companhia Brasileira de Estireno (1957), a Union Carbide (1958) e a Copebrás (1959), todas elas relacionadas com subprodutos do petróleo. Após 1964, o processo de industrialização sem preocupações maiores se acelera. A Cosipa, siderúrgica, é de 1965. Após um curto fôlego, chegaram também os fertilizantes, com a Ultrafértil, em 1970, puxando a fila.

Estas indústrias, na verdade, chegaram primeiro que a população e rapidamente ocuparam os únicos terrenos mais apropriados à urbanização, 18% de planícies e mangues aterrados. Típico da modernização apressada e sem preocupação social, restou à leva de trabalhadores - principalmente migrantes nordestinos - ocupar os "quintais" das fábricas e os mangues.

O atraso social de Cubatão, em contraste com a modernização industrial, refletia-se também em sua vida política. Autônoma em 1833, foi incorporada à cidade de Santos, sua vizinha, apenas oito anos mais tarde, em 1841, e assim permaneceu por mais de um século. Voltou a ganhar estatuto de município apenas em 1949. Em 1968, o Regime Militar transformou-a em área de segurança nacional e Cubatão teve todos os seus prefeitos subseqüentes nomeados.

Dos seus prefeitos, um era sobrinho do ex-presidente Castello Branco (Zadir Castello Branco); outro (Carlos Frederico Soares Campos) era irmão gêmeo do governador biônico do Mato Grosso, e foi retirado do cargo em Cubatão pelo então governador de São Paulo, Paulo Salim Maluf, por corrupção. O seu substituto, o malufista José Passarelli, também nomeado, preocupava-se em "mudar a imagem da cidade", mas a única solução que entrevia para resolver os problemas de poluição era remover a população.

Em junho de 1984, o juiz Décio Leme de Campos rejeitou uma denúncia contra Passarelli por responsabilidade no mais trágico acidente até então ocorrido em Cubatão: o famoso incêndio de Vila Socó, uma das muitas favelas que nasceram à volta do centro industrial. No final de fevereiro desse ano, 700 mil litros de gasolina haviam encontrado uma válvula fechada, em um dos cinco dutos da Petrobrás que passam sob a Vila Socó. A pressão excessiva forçou os canos corroídos pelo combustível e o estouro, em seguida, acabou transformando-se num imenso incêndio que literalmente devorou centenas de barracos. Avaliações não-oficiais apontavam entre 600 e 900 mortos, principalmente com base no número de alunos que deixou depois de comparecer às escolas. o número oficial de mortos era de apenas 93.

Quase vinte mil pessoas vivem nas encostas da serra - O acidente acabou por implicar o presidente da Petrobrás e ministro das Minas e Energia do governo Geisel, Shigeaki Ueki, e mais 16 funcionários graduados da empresa estatal de petróleo. Entre estes últimos estava um almirante, Telmo Becker Reifschneider, superintendente geral de transportes da Petrobrás. O juiz Décio Leme disse, à época, ter aceito a denúncia por ter percebido nas provas o fumus boni juris, expressão latina que significa um "cheiro" de crime. Os altos funcionários, segundo a acusação, sabiam das condições precárias das instalações e não fizeram nada para impedir a tragédia.

Nos 13 anos anteriores, segundo as denúncias, haviam sido detectados 174 vazamentos nos dutos de combustível da Petrobrás e em 1984 completavam-se cinco anos sem reforma das instalações. E não fora por falta de aviso, já que um ano antes, em 1983, um vazamento sério sobre o rio Atibaia, próximo dali, criava quatro quilômetros de chamas sobre as águas.

O prefeito Passarelli, em denúncia semelhante à que se fez à Petrobrás, também poderia ter evacuado pelo menos os barracos clandestinos de Vila Socó. Nesse caso, porém, o juiz considerou que o prefeito não tinha recursos para tomar as medidas.

Segundo a revista Veja de 2 de dezembro de 1981, o descaso administrativo com relação às condições de vida em Cubatão já era então um fato bem conhecido: "Técnicos do Banco Mundial queixam-se regularmente do completo desinteresse da prefeitura de Cubatão por verbas destinadas ao combate à poluição".

Em 1982, além disso, devido à crise econômica, favelas como as de Vila Socó, longe de serem contidas, espalharam-se por lugares igualmente perigosos - sobre a estrutura instável da serra do Mar, que cerca a cidade do lado Leste: entre 1980 e 1982, a população residente nas devastadas encostas da serra, já a quase cem metros de altura, saltava de 4.500 para 17.500 pessoas.