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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 199 a 206:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[21] D. Joaquim Baltazar da Silveira

Não houve em todo o Brasil, e disso são testemunhas vários autores que trataram da Abolição, cidade que se destacasse mais do que Santos na luta pela extinção do cativeiro. O Ceará gaba-se, e com muita justiça, de haver precedido o Brasil na instauração da igualdade, em 1884, mas em Santos, a 27 de fevereiro de 1886, também deixava de haver cativos e desde 1882 que ela vinha libertando escravos de todas as regiões, recolhendo-os em seu 'Jabaquara', o reduto livre, fundado para isso, que a glorificava e lhe dava a alcunha de 'Terra da Promissão' - 'Canaã'.

Já houve mesmo quem afirmasse, e com autoridade, que, sem São Paulo, não se faria a Abolição no Brasil em 1888, e sem Santos não se faria a Abolição em S. Paulo. Força de expressão talvez, muito a gosto dos continuadores de Antônio Carlos, o notável Andrada a quem atribuem o aforismo local:

- Do mundo - a América; da América - o Brasil; do Brasil - São Paulo; de São Paulo - Santos; de Santos - a família Andrada; e da família Andrada - Eu!

Dizemos força de expressão, porque toda gente sabe que a Província de São Paulo, desde 1827, vinha tentando e realizando a substituição do negro pelo branco, do escravo pelo operário livre, na compreensão espontânea dos males do cativeiro e das vantagens reais da sua eliminação sistemática, a ponto de reduzir sua população escravizada, de 400.000 indivíduos, que era em 1830, aos 40.000 apenas verificados em 1888.

Apesar disso, 'Jabaquara', o quilombo da liberdade, foi a suprema criação do branco em favor do negro, o ponto mais alto e mais luminoso do abolicionismo brasileiro, encravado no coração de Santos, onde os Patrocínios e os Bocaiuvas andavam às dúzias pelas ruas, agindo mais do que falando.

Rebuscando as páginas volvidas daquela época, o cronista poderá tirar de lá mancheias de exemplos para esparzi-las sobre a sociedade atual, como rega generosa, dissipadora das modernas egolatrias herdadas ao velho mundo, onde, à falta de espaço para a vida, vão-se os homens digladiando e concentrando na doutrina do Eu.

Em fins de 1886, quando o 27 de Fevereiro já resolvera definitivamente o problema da escravidão municipal, permitindo que Santos inteira se voltasse para o resto da Província, o 'Jabaquara' abrigava mais de três mil escravos - os mais procurados por seus senhores - e os sítios e chácaras santistas abrigavam outros tantos, do Cubatão à Ponta da Praia e da Bertioga ao José Menino, enquanto todo o povo, compreendendo mesmo as autoridades civis e militares convertidas pelo exemplo, dedicava-se à sua assistência e ao amparo aos que chegavam.

Nessa ocasião, o governo imperial, trabalhando pelos escravocratas da Província e demonstrando sua verdadeira intenção a respeito do assunto, enviou para Santos uma importante força militar para fechar a serra, dissolver o 'Jabaquara', facilitar a recaptura dos 'capitães do mato' e trancar as passagens do interior para o mar.

A notícia circulou como o vento, por toda a cidade. Era incrível, mas já estava confirmada, e resultara de um telegrama que o sr. visconde de Parnaíba enviara ao governo, no Rio de Janeiro, confessando o desmoralizador êxodo das massas escravas da Província.

Custava crer que o Exército Brasileiro, que se negara até então a custodiar o escravismo e a pegar negro na estrada, houvesse resolvido apoiar os escravocratas e inutilizar a grande obra popular da redenção! Era o que toda gente comentava, alarmados como estavam os abolicionistas locais.

Todas as atenções se voltaram para as águas do estuário santista, onde, numa daquelas manhãs inverniças de agosto, devia fundear o lugre sinistro. Foi um corre-corre entre S. Paulo e Santos e entre a cidade e o porto, uma lufa-lufa entre a gente do movimento personificado por Antônio Bento em cima e Santos Garrafão e Quintino de Lacerda em baixo da serra.

Pensavam os estremados em minar as águas do estuário, em assaltar o Forte da Barra Grande e atacar o navio a canhonaços... pensavam mesmo em muita coisa, levados pelo ardor de sua dedicação humaníssima.

E o lugre chegou realmente, mas banhado de um sol esplêndido, que dardejava por cima dos cabeços muito azuis de Jurubatuba; entrou sereno, empavesado, como um grande cisne calmo, penetrando o silêncio da baía, fundeando pouco além da ponte do Belmarco.

Delegados pelo Partido Abolicionista de Santos e protegidos pelas autoridades do porto, dois dos melhores elementos da campanha embarcaram-se também na catraia policial e lá foram para o lugre. Eram o Ricardo Pinto e o Américo Martins. Entraram e, disfarçadamente, como dois bons espiões, puseram-se a sondar o ambiente, ansiosos por saberem o número de soldados que o governo mandava e quem era o seu comandante; sondá-lo, se possível, estudando a hipótese de um entendimento salvador.

Momentos depois já sabiam quantos homens vinham, eram quatrocentos, bem armados e municiados; já sabiam o nome do comandante da força, mas não tinham conseguido vê-lo. Procuravam-no por onde lhes era possível, quando uma voz forte soou junto deles, ao mesmo tempo que um puxão pelo braço alarmava o Américo:

- Olá, camarada! Pois você não é o Américo? Venha de lá um abraço, homem!

O santista sentiu uma extraordinária emoção. Via-se frente a frente, e mais do que isso, nos braços de um militar corpulento, cheio de bordados e galões, imponente, que o cingia com aspecto sorridente e sincero. O Américo gaguejava,t tentando mentalmente reconhecer aquele graduado.

- Pois então não se lembra de mim? (insistiu o oficial). Será que a barba alterou-me tanto? O Joaquinzinho da Silveira... seu companheiro de banca na Escola Militar!

- Meu amigo!... É você mesmo!!

Houve uma efusão de comover entre os dois homens. Recordações de quinze anos atrás desfilaram na conversa de ambos; coisas da Praia Vermelha e do general Polidoro... ecos do Rio de Janeiro agitado do tempo da guerra do Paraguai... lembranças de companheiros... entre muxoxos de pena e risos de pura satisfação.

Naquela imprevista mudança da situação o Américo até esquecera o Ricardo, e só então o apresentava ao antigo companheiro de escola.

D. Joaquim era um trineto de d. Braz Baltazar da Silveira, o 2º capitão-general, governador da Capitania de São Paulo e Minas, na época afastada de 1713; conservava ainda aquela linha de fidalguia da sua notável estirpe, e os dois santistas o observavam, convencidos de que ele não era homem para cumprir tão negra missão, sem coragem, porém, para interpelá-lo.

O próprio d. Joaquim veio precipitar a solução do caso, contando ao amigo que vinha auxiliar a sufocação de motins que estavam ocorrendo em São Paulo.

O Américo sorriu; o Ricardo fez o mesmo. D. Joaquim estranhou aqueles sorrisos:

- Vocês sorriem?

- Qual motins, qual nada! Você, d. Joaquim, veio mesmo para combater o abolicionismo; para ajudar a pegar negro na estrada, para impedir-nos a ação... O governo enganou-o... mandando-o contra os redentores de uma raça!

O amigo santista não pudera conter-se e desabafara.

D. Joaquim Baltazar transfigurou-se. Já não era o mesmo homem de aspecto brejeiro; empertigou-se em toda a altura, abrindo o peito largo, levantando a cabeça:

- Nunca! Eu nunca seria isso, Américo! Se me enganaram, hão de ter a resposta!

De fato, d. Joaquim não desonrou a farda gloriosa do Exército. Pelo contrário, ele honrou-a com a nobreza da sua revolta e, quando a sua tropa desceu, estava aumentada a legião abolicionista, com tantos soldados quantos ele trazia. D. Joaquim Baltazar da Silveira foi, em Santos e na Província, um grande ponto de apoio para as fugas em massa. A Providência realizara o encontro de dois amigos para apressar o milagre da liberdade.

No dia em que o 'Jabaquara' devia chorar, todos os seus negros sorriam e cantavam, consubstanciando a grande bênção da raça.

...D. Joaquim transfigurou-se. Já não era o mesmo homem brejeiro:...

- Nunca! Eu nunca seria isso Américo!...

Imagem publicada na página 205