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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 191 a 198:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[20] O susto de Pai Adão

A história não conservou o nome de um sargento da polícia que muitos serviços prestou à campanha da Abolição em Santos, ao tempo em que ela, como nova Canaã, era o sonho permanente do cativo e o rumo comum de todo negro que queria ser livre. Apenas um apelido ficou como lembrança daquela sombra boa - o 'sargento Fiuza', e em torno desse apelido, o culto popular, a grande força anônima consagradora, fez-lhe honra à memória, repetindo seus feitos e atitudes em favor da raça sofredora.

E o sargento benemérito que trabalhou contra as obrigações de sua farda sem traí-la, vive hoje, quase ideal, na reminiscência dos velhos e na tradição da terra, tanto mais lendário quanto mais o tempo se afasta dos momentos heroicos da grande Campanha.

Contam-se muitos, inúmeros casos ocorridos com o sargento santista, mas o caso do Adão a todos supera pela importância e, ao tempo, como o caso doloroso e heroico do negro Pio, anos atrás, chegou a inspirar muitos poetas.

Já se sabia então na capital paulista que os pretos, fugindo em massa das fazendas distantes, do interior, reagiam contra as escoltas da polícia que lhes mandavam ao encalço, gritando:

- Liberdade ou morte! Viva a liberdade! Aqui ninguém se rende! Atirem, 'seos' 'cabeças de fósforos'!

O resultado foi adotar a polícia uma nova tática: cercar os 'retirantes' na fralda da serra do Cubatão, caminho de Santos, surpreendendo os 'fujões' extenuados, já sem forças para reagir. E eram comuns as levas de cativos, em geral pequenas, que se aventuravam pela floresta bruta, à fome, às onças que os rondavam, às serpentes, aos espinhos, aos precipícios imprevistos, ao cansaço da jornada terrível, entre gemidos de velhos e mulheres e choros desesperados de crianças, num último e desvairado intento de alcançar Santos, a terra da liberdade.

Uma ou outra das levas fugitivas apresentava-se mais numerosa, mas a maior de todas foi a que chefiou o negro Adão. Essas consagrou aquela carta de Castro Alves, de muitos anos atrás, ao seu cunhado, o amigo Augusto Guimarães, na Bahia, em que ele dizia, entre outras coisas:

"Devo dizer-te que os meus ESCRAVOS estão prontos. Sabes como acabo o poema? Devo a S. Paulo esta inspiração. Acabam no alto da serra do Cubatão, ao romper da alvorada sobre a América. É um canto do futuro, o canto da esperança".

Mas vamos ao caso.

De S. Paulo, naquele ano de 1883, descera a Santos um emissário da polícia para dar aviso da aproximação de uma grande leva de negros fugidos, para que o delegado de Santos providenciasse a prisão dos fugitivos e sua reentrega aos senhores do interior.

As escoltas de Jundiaí e Campinas, que se haviam recusado a enfrentá-los, tal o seu número, informavam ser mais de quinhentos, armados de foices, facões, enxadas, ancinhos, tridentes e outros instrumentos agrícolas, que obedeciam a um negro hercúleo, de nome 'Adão'.

A polícia de Santos, que em tal altura ainda não havia aderido aos abolicionistas, cumprindo as ordens recebidas, aprestou-se, e, além dos vigias escalados para Piaçaguera, Quilombo e outras regiões, mandou uma forte escolta, de trinta homens, sob o comando do nosso sargento Fiuza, a guarnecer a cabeceira da Ponte do Casqueiro, com ordem terminante de trancar a passagem, a qualquer custo. A ordem era essa:

- Que ninguém passe naquela ponte!

E assim, lá se foi para o Casqueiro, a luzida escolta de trinta homens, armados de carabinas de guerra.

Realmente, depois de longos dias de penosa marcha por impérvias florestas e terríveis grotões e sangradouros, depois de tantas mortes pela fome, pelos acidentes e pelas onças assanhadas, trezentos escravos, entre homens, mulheres, velhos e crianças, famintos, seminus, esgotados, sob o comando forte do Adão, chegavam à raiz da serra famosa, pouco distante da velha estrada que corria para a "Terra Prometida" de Santos, onde estava o Jabaquara. Qual outro Moisés, o negro Adão caminhava à frente dos canhemboras, decidido a tudo, em defesa de sua gente.

Agora, aproximavam-se os infelizes da ponte da salvação, a ponte do Casqueiro, onde, em regra, os abolicionistas possuíam dezenas de boas canoas, prontas a carregar para Santos os 'fujões' que conseguissem chegar até ela. Um batedor fora mandado à frente, para reconhecer o caminho, e voltara ao Adão com a triste nova de que a ponte santista estava guarnecida de um pelotão da polícia, armado até os dentes.

Pobre Adão! Que desconsolo apoderou-se dele; que desconforto sentiu em seu ânimo de lutador! Ele, que tinha sido forte até ali, quando a liberdade já sorria a todos, após tanta miséria, tanta morte, tanto pranto, tanto sofrimento... Pela primeira vez, os companheiros viram o Adão baixar a cabeça para o peito e largar os braços para o chão, numa atitude de abandono. O efeito do espetáculo foi terrível para a turba; mas durou pouco. O Adão pensou talvez: - Seja o que Deus quiser! - Sua cabeça alçou-se novamente, seu peito abriu-se, suas narinas inflaram, seu olhar alongou-se para o horizonte, e ele movimentou-se em direção da ponte fatal.

Ali estava agora, a poucos metros do bando, o Casqueiro, o rio da liberdade, e sobre ele, aberta na direção de Santos, a ponte da Esperança... mas, lá estavam também, do outro lado, hirtos, espectrais, inexoráveis, os trinta homens da polícia, armados e embalados.

O Adão surgiu na cabeceira da ponte. Vinha caindo a noite e uns assovios longos, penetrantes, soavam lá em baixo, na ribanceira distante e silenciosa do rio.

A voz do sargento comandante estrugiu no silêncio:

- Soldados! Preparar!

Houve um ruído sinistro de ferrolhos. A ceifa seria tremenda se houvesse luta; o sacrifício seria inútil se houvesse rendição; tudo estava perdido! - Pensava o Adão, imóvel, imponente como uma escultura.

O chefe negro viu, porém, o sargento comandante encaminhar-se sozinho, em sua direção, e a emoção apoderava-se dele; viu-o chegar á distância de quinze metros talvez e gritar novamente, para ele e sua gente:

- Negros do diabo, aqui ninguém passa! São ordens... ninguém passa,ouviram? Entreguem-se ou eu lhes dou o "troco"! - (e em seguida, abaixando a voz, segredar para ele, Adão): - Mas passem por baixo dela... por ali... nas canoas dos abolicionistas! Vão com eles... vão com Deus!... Vão... depressa!...

O Adão não resistiu, caiu de joelhos e chorou pela primeira vez:

- Deus seja louvado!

O gigante negro levantou-se e correu para os seus, enquanto o sargento voltava a passo para a sua tropa.

De fato, disfarçados em pescadores, lá estavam no rio dezenas de abolicionistas, com suas canoas, avisados pelos companheiros de São Paulo, prontos a levar os fugitivos para a "Canaã" santista, e eram eles que assobiavam de longe para os canhemboras do Adão.

Na cabeceira da ponte estourava uma ordem:

- Avançar! - Era o sargento Fiúza a movimentar os homens da polícia; mas já não havia um negro na estrada; e, quando os soldados chegaram ao fim da ponte, as primeiras trevas já protegiam os escravos e todos eles já estavam nas canoas ou na água, agarrados a elas, partindo rio abaixo. Tiros espocavam, lá ao longe. Era a 'figuração' do Fiuza.

O sargento da polícia cumprira seu dever, ao pé da letra. Pela ponte, em verdade,não passara ninguém; ele não desrespeitara as ordens superiores e não desonrara sua farda, mas, naquela mesma noite, o 'Jabaquara', o reduto nobre da cidade de Santos, contava mais trezentos moradores, livres, inteiramente livres, como os seus libertadores.

...- Mas passem por baixo... por ali... nas canoas dos abolicionistas... vão com Deus!

O Adão não resistiu, caiu de joelhos...

Imagem publicada na página 197