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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 141 a 148:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[14] A última chácara da Barra

A velha "Chácara dos Dois Rios", chamada ultimamente "das Pescadinhas", é uma das boas reminiscências sociais de Santos. Foi a primeira chácara da Barra, anterior mesmo à de Embaré, do comendador Ferreira da Silva, que foi pai do visconde daquela invocação, e desapareceu na hora do progresso, da expansão da cidade, trazida pelo século vinte.

No princípio do século passado ainda era ponto de caçada, pois ficava ao centro de uma região de banhados, abundante de aves aquáticas de toda ordem, garças, socós, narcejas, saracuras, marrecos, mergulhões, maçaricos, patos bravos, assim como de pacas e veados. Da cidade, então, que ficava ao outro lado da ilha, limitada ao pequeno espaço entre Paquetá e Saboó, iam famílias amigas veranear e praticar a caça e mesmo a pesca em seus domínios.

Em 1865 adquiriu-a a veneranda paulista d. Carolina Mariana dos Santos, filha dos Galvão Bueno de S. Paulo e viúva do conselheiro com. Antônio Martins, continuando a tradição da velha chácara, hospedando as famílias amigas que a procuravam, e promovendo recepções.

Como ela, existiam algumas em toda a Barra, mas as velhas chácaras foram desaparecendo com seus possuidores, a começar pela do "José Menino", a mais retirada, e a terminar pelas "do Embaré" e "da marquesa de Santos", na Ponta da praia. Foi ela, porém, a última a desaparecer, com suas palmeiras e pinheiros alinhados, com suas vastas amendoeiras a sombrearem o velho solar, com seu pomar e o bosque virgem que ficavam aos fundos. Hoje, em seu lugar, abrem-se a Rua da Paz e a Avenida Washington Luiz, com seus prédios novos e seus "apartamentos", símbolos materiais do século.

É da "renascença" da chácara santista, a reminiscência de um velho, que se vai contar.

Foi8 em agosto de 1874. A chácara de d. Carolina regurgitava da melhor sociedade local: os Ferreira da Silva, os Proost de Sousa, os Rocha Leite, os Menezes Forjaz, os Pereira dos Santos, os Gama Cochrane, os Xavier da Silveira, os Botelho de Carvalho, os Martins Rodrigues, os Ablas, os Nébias, os Bittencourt, os Carneiro Bastos, os Carvalho Costa, os Vergueiro e tantos mais.

Amaro Pinto da Trindade, o celebrado maestro compositor dirigia a sua orquestra de salão e deliciava os presentes com as últimas valsas, novidades para Santos, e mais as velhas polcas e mazurcas ou os saltitantes "schottishs", mantendo em constante movimento os convidados.

Xavier da Silveira, o "Silveirinha", orador famoso, tribuno, jornalista e poeta, figura obrigatória das festas locais, lá estava, centralizando as atenções de velhos e moços, requestado por toda as moças casadoiras. Amaro Pinto mantinha verdadeira veneração pelo moço conterrâneo, por seu talento, por sua altivez, por sua cultura, por sua voz, por sua simplicidade. Tudo em Xavier da Silveira enlevava-o, como enlevava uma sociedade inteira, em Santos e em São Paulo. Pediu-lhe que cantasse uma das suas valsas-serenatas. Xavier da Silveira cantou-a em meio do salão, e tudo em redor petrificou-se, embebido na melodia e na doçura da sua voz. Amaro Pinto beijou-o comovido; "Silveirinha" era o seu grande, o seu melhor amigo, o seu irmão de sonhos. As velhotas precisavam conter as filhas e netas para que não fizessem o mesmo, com aquele seu surdo e imperativo:

- Meninas!!

Depois do "Silveirinha", uma senhora Vieira Barbosa, de linda voz aveludada e quente, cantou a Serenata de Schubert, muito em moda na época, dedicando-a a Xavier da Silveira. O poeta ouviu-a até quase o fim, mas, antes do seu término, tomado de estranha comoção, retirou-se da sala.

Sua saída foi notada e sentida apenas pela cantora, que lhe votava uma profunda simpatia e não lhe tirava os olhos de cima, mas, essa notara-lhe o embargo emocional. Amaro Pinto, que fazia o acompanhamento, notou-a somente ao fim da execução; levantou-se então e saiu à procura do amigo, arrastando consigo outros moços.

Xavier da Silveira foi encontrado minutos depois, internado pela praia, próximo às pequenas maretas, contemplando a lua e a vastidão do oceano banhado por ela; estava com o rosto coberto de lágrimas e como em êxtase, a garnde cabeleira anelada, caída em desalinho; sobressaltou-se à intervenção dos companheiros, como se o acordassem de um sonho, e tentou esconder aqueles restos de lágrimas que lhe marejavam o semblante.

Os amigos disfarçaram e Amaro Pinto falou-lhe por todos, ternamente:

- "Silveirinha", você veio inspirar-se na natureza?

Amaro Pinto jamais o vira tão pálido. Saiba da última caçada do poeta e da frase que ele deixara sobre a "Pedra do Judeu", o grande rochedo do rio de Sant'Ana:

- Xavier da Silveira nunca mais caçará nestes lugares!

Achava tudo tão esquisito, pareciam despedidas, e afinal o seu amigo era tão forte, tão moço.

O poeta fizera uma pausa sobre a pergunta amiga de Amaro Pinto, e respondera depois, descansadamente, os olhos quase fechados, como se contemplasse uma visão interior:

- Não vim contemplar a natureza, meus amigos; vim refugiar-me nela, vim despedir-me dela... Tinha comigo umas sobras, uma contribuição de lágrimas, que não podia derramar ali, naquele remanso de amigos em que me achava, porque ali era o templo da felicidade! Aquela serenata lembrou-me a obrigação da despedida, e o luar cá fora acolheu-me como uma última manifestação do mundo!...

"Silveirinha" terminou seu desabafo, em versos, naqueles versos que lhe cantavam sempre à flor dos lábios, e que encantavam as moças, mas, desta vez, repassados de profunda tristeza e desconsolando os amigos:

- Fui vertê-las sobre as águas
Que gemem com as procelas,
Porque o pranto do infortúnio
Deve gemer como elas.

A que infortúnio, porém, se referia o poeta-orador, se sua vida então, aos trinta e quatro anos sadios, vinha-lhe sendo um perpétuo sorriso, uma sucessão de glórias e conquistas, um deslumbramento de fogos de artifício?

Terminara a festa. Os carros senhoriais levavam para a cidade distante os últimos convidados, menos os que ficavam para o veraneio do costume.

Só dias depois, compreendeu a cantora apaixonada, da "Chácara dos Dois Rios", compreendeu Amaro Pinto e compreenderam todos os amigos do poeta, o mistério da retirada e das lágrimas do "Silveirinha" dias antes, na festa da Barra. A varíola invadira Santos, ceifando vidas, espalhando luto, distribuindo gemidos pela cidade. O poeta sofrera também o seu contato, e lá estava agora, ao fundo de um leito, delirando, delirando sempre.

Só então se viu como ele tinha amigos, tanto entre os grandes como entre os pequenos. Pescadores do Guaiuba, do Monduba, da Bertioga, da Praia Grande, da Bocaina, do Guarujá, da Ponta da Praia, mateiros do Cubatão, de Piaçaguera, de Jurubatuba, do Rio Branco, do Japuí, do Quilombo, da Paciência; gente humilde de todos os pontos da região ali estava, a revezar-se em sua porta, em rondas noturnas, sofrendo as suas pioras, chorando com a sua família. E ali estavam também, diariamente, os homens da Câmara, as autoridades, os advogados como ele, os professores, os ricaços da cidade, acompanhando a marcha da moléstia, interessados na salvação do "Silveirinha".

Ao fim de doze dias, porém, o poeta estava morto, sob o pranto e com a consternação de todo o povo de sua terra; ele era dos amigos e, nos braços de um amigo caríssimo, Feliciano Bicudo, exalou o seu último suspiro.

Amaro Pinto, alma de poeta também, músico de raça, ficou desolado; declarou que perdia o mais caro dos irmãos, e dizem que foram dessa época as suas melhores inspirações.

Sete dias depois, na matriz, o maestro santista regia a sua orquestra, acompanhando a missa fúnebre do amigo. Não resistiu a uma tentação; era quase uma heresia, um escândalo, mas tocou a Serenata, a Serenata de Schubert, que fizera chorar Xavier da Silveira, e agora era ele, invadido de saudade, quem chorava em soluços, no alto do coro da velha igreja santista, molhando as teclas do harmônio emudecido.

Para Amaro Pinto, aquilo era como um remate da festa da "Chácara dos Dois Rios".

Para nós, tudo isto é uma reminiscência doce-amarga da época das grandes amizades, da comunhão social, que passou definitivamente, e de que a velha chácara era um símbolo.

...Xavier da Silveira foi encontrado minutos depois, internado pela praia, próximo de pequenas maretas...

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