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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 110 a 118:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[11] Nossa Senhora das Neves

Nossa Senhora das Neves é uma tradição que se apaga. Com o afastamento do século dezenove, mais e mais se esfuma no painel da memória o antigo prestígio da Santa. Seu morrinho, ao mesmo tempo histórico e tradicional, lá está, ao fundo do estuário santista, sombrio, marcando a entrada do Jurubatuba, com suas pobres ruínas em decomposição, falando ao povo deste século (N. E.: século 20), uma linguagem que quase ninguém compreende.

Nos primeiros quartéis do século passado
(N. E.: século 19), tinha prestígio a Santa e tinham fama as suas procissões aquáticas, que reuniam o mundo social de Santos e eram realizadas todos os anos, em seu dia. Dezenas e talvez centenas de embarcações a remo formavam o cortejo, seguindo a chata grande, onde iam o andor e o pálio, o vigário, o presidente da Câmara, autoridades diversas e pessoas gradas.

A procissão original desfilava lentamente pelo estuário e levava horas em seu trajeto; os aguadeiros, por isso mesmo, seguiam-na, providos das águas puras das cachoeiras vizinhas, vendendo aos participantes do cortejo, cada copo a vintém. A longa fila de barcos de toda espécie passava junto aos navios, onde as guarnições se perfilavam em continência, junto aos fortes de Itapema e Nossa |Senhora do Monte Serrate, que salvavam em honra da Santa, voltando finalmente à capela tradicional costeando a Bocaina.

Formavam a retaguarda do cortejo os negros, os escravos de todos os sítios, acompanhados dos feitores, cantando um velório religioso.

A Santa das Neves e sua devoção tinham então pouco mais de cem anos, pois que se haviam instalado sobre as ruínas do antiquíssimo Engenho da Madre de Deus, com capela, abandonados ao fim do século dezessete, passando mais tarde à nova invocação por influência dos pretos. A Santa milagrosa e seu culto surgiram duas décadas depois da grande importação africana, começando sua história com as saudades, as lágrimas e os sofrimentos de vinte anos dos escravizados da região, arrancados brutalmente ao kraal, à liberdade da aringa em sua pátria distante, e, desde então, a Santa, branca e azul como as cachoeiras e os céus da terra em que os escravos sofriam, passou a ser o seu lenitivo espiritual. Nossa Senhora das Neves ficou sendo para aqueles pobres entes a única família na terra, e sua contemplação o único contraste ao negror do cativeiro.

Quando os negros chegavam à colina sagrada e penetravam na pequena ermida, todos os sentimentos maus e as más lembranças desapareciam de seu coração; prosternavam=-se ao pé do altarzinho tosco, onde jamais faltavam as lamparinas e as franjas de linho, implorando a suavização do seu triste destino e rezando pelo branco mau que os escravizava, pelos filhos dele, que ajudavam a criar, e que não tinham culpa.

Era tal a sua fé na Santa que, enquanto ali estavam, parecia-lhes extinta a amargura do eito, o horror do tronco, da gargalheira e do vira-mundo. O próprio odor dos lírios do brejo, florindo pela vizinhança, parecia-lhes uma emanação balsâmica da imagem sagrada, e eles o respiravam em haustos longos, inflando as narinas e enchendo o peito.

O prestígio de Nossa Senhora atingia também os senhores, e assim, embora a contragosto, aquela era a única folga semanal que davam aos seus escravos, mais pelo receio moral de um castigo.

Até a água da Santa tinha prestígio na cidade. Não havia encanamentos em Santos, e eram insuficientes os mananciais da cidade: das "Duas Pedras", de "Itororó", de "São Jerônimo" e de "São Bento", vindo então os aguadeiros vender pelas ruas a boa e abundante água das cachoeiras vizinhas, em moringos, cântaros, púcaros e latas grandes, trazida em carroças, de porta em porta, e anunciada em pregões. A de Nossa Senhora das Neves tinha em pipas, montadas nos batéis, e era vendida, aos compradores, na "praia", junto à rampa do Consulado, a dois vinténs a lata; mais cara do que as outras, porém, mais procurada.

Um dia, em 1850, mão criminosa e desconhecida ateou fogo ao sítio de Nossa Senhora e à igrejinha da Santa. Foi um rebuliço e um estouro entre os negros. Por muitos dias, choraram todos os escravos, de desespero e de raiva impotente, cantando ao cair das noites a matanga triste da terra natal, cortada de gemidos e lamentações. Eles ainda haviam tentado salvar a capela, mas tudo fora em vão; o fogo deixara, ao cabo de um dia, apenas algumas paredes fumegantes. A própria imagem, que era de madeira, desaparecera entre os escombros e rescaldos.

Restava àqueles homens saber quem seria o criminoso. Alguém devia pagar pelo crime nefando, pelo horrível sacrilégio que os deixara na orfandade moral. Entraram a pesquisar.

As suspeitas recaíram logo depois sobre o feitor de um engenho de Cabraiaquara, Antônio Joaquim, um português de maus bofes que, havia tempo, prometera acabar com aquela regalia dos negros, pretexto para vagabundagem. Obtida a certeza da autoria, a proteção do senhor do Engenho acobertou o sacrílego, e a consequência foi a revolta dos cativos da região; fugiram todos para o mato; queriam a punição do culpado e a restauração da capela; só assim voltariam; mas, por orgulho, nada lhes foi concedido.

A família do senhor, temendo uma represália, arrumou-se de malas e bagagens para a cidade e Antônio Joaquim embarricou-se na velha propriedade com alguns portugueses como ele.

Ao cair daquela noite ouviam-se na mata vizinha a batida sinistra dos atabaques e o canto chorado dos canhemboras. Com a noite fechada surgiram os fantasmas. Vinham os escravos, aumentados em número, de archotes e armas diversas. A devastação começou; começou a queimada. Momentos depois, ardiam as senzalas, a tulha, o paiol das ferramentas, as cocheiras, os carros e, por fim, também a Casa Grande, enquanto em torno os negros, asselvajados e entregues ao natural instinto, retornados á antiga brutalidade, dançavam barbaramente, ao som lúgubre dos atabaques e caxambus.

Tomado de pavor ante o quadro que jamais sonhara em sua vida, Antônio Joaquim saiu pela porta dos fundos e fugiu para a serra; acossado pelos negros, procurou a escápula da cachoeira, preparava-se para um salto em seu ponto mais fundo, quando dois braços fortes o sustiveram.

A horda africana amarrou-o a um varal, como troféu de caça, e carregou-o, entre gritos e cantos rudes, para o sítio de Nossa Senhora das neves. O terror de Antônio Joaquim estampava-se em seu rosto. Que iriam fazer dele aqueles homens?

Chegado ao sítio da Santa, onde os restos enegrecidos da Capela se erguiam para o céu como braços carbonizados indicando o fim de sua história, os negros embeberam em espírito as roupas do feitor criminoso e lançaram-lhes fogo, tal como ele fizera aos lugares sagrados.

Antônio Joaquim, como uma visão apocalíptica, urrando de dor e desespero, transformado em tocha humana, lançou-se morro abaixo, no intuito de alcançar as águas, porém, quanto mais corria, mais cresciam as labaredas em seu corpo; não teve tempo de atingir o estuário; caiu mesmo à beira da água que devia salvá-lo, e lá mais para cima, assombrando a encosta, cheios de clarões rubros, os negros riam, em gargalhadas selvagens, de ódio e de vingança.

Estava findo o drama. Extinguira-se o grande traço de união entre as duas raças em Santos. Desaparecera Nossa Senhora das Neves, suavizadora do cativeiro, e com ela a grande devoção dos negros, as suas procissões tradicionais e a aproximação das almas e das raças, que as festas anuais promoviam.

Os negros de Cabraiaquara, do Peruti, da Pedreira, do Morrão, libertos pelo drama de Nossa Senhora das Neves, sumiram-se pelas serras vizinhas, formando um quilombo armado, engrossados a cada mês com as forças de novos companheiros dos sítios da região. Tornaram-se os famosos canhemboras do Quilombo, como os chamavam na época, e tão importante tornou-se o seu bando que polícia alguma jamais se meteu naquelas solidões a persegui-los.

Trinta e poucos anos depois, tomava vulto em Santos a campanha da Abolição. Começavam os brancos a reparar a culpa da sua raça e das últimas gerações. Surgiram os heróis sociais batendo-se pela liberdade dos "seus irmãos" negros. Santos chefiava de fato o movimento humano de igualdade e da fraternidade na Província de São Paulo, contra as leis vigentes e contra a força. Fundaram o "Jabaquara", reduto armado, protegido por todo o povo e em parte pela própria polícia, chefiado por Quintino de Lacerda, um negro de alma branca, e onde todo escravo era livre, definitivamente.

Foi o fim do Quilombo. Um negro de sessenta anos fortes, chefiava então os remanescentes do Engenho de Cabraiquara, os últimos vingadores de Nossa Senhora das Neves; era o "pai Filipe", como todos diziam; e "pai Filipe", sabedor da madrugada de liberdade que raiava ali mesmo perto, na Santos que ele bem conhecia, foi também para o "Jabaquara" com toda a sua gente, e, como "rei" que era, pelos trinta anos de domínio na floresta, ficou isolado, formando um segundo núcleo do "Jabaquara", atrás do Monte Serrate. Era o mais curioso e o mais rude dos negros recolhidos; e, aos olhos dos visitantes que lá iam aos domingos, "pai Filipe" desenvolvia os seus batuques, seu samba africano, sua dança do corvo, troando seus atabaques e caxambus, menos para os brancos do que para si mesmo e para os seus, atordoando no coração e no ouvido os ecos de todas as suas recordações.

...Um dia, em 11850, mão criminosa e desconhecida ateou fogo ao sítio de Nossa Senhora e à igrejinha. Foi um rebuliço e um estouro entre os negros...

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