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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 6 a 20:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[02] A conversão de Pero Correia

Na Santos e na São Vicente de 1549, almenaras de uma civilização que começava a lançar primeiras claridades à madrugada brasileira, o nome de Pero Correia era como uma bandeira desfraldada, cheia de bordados e fulgurações. Quando ele chegou com Martim Afonso no ano já distante de 1532, tinha vinte e três anos e trazia o estouvamento da mocidade aventureira. Instalara-se então nas antigas terras do "bacharel", fronteiro a Tumiaru, junto ao pequeno e precário porto de bergantins, onde estava desde 1532 o trapiche alfandegado da vila afonsina. Ali, naquele retiro, misto de solidão e acampamento de mercadores, desenvolveu ele o plano mercantil que mentalmente organizara.

As primeiras pataras e os melhores bergantins particulares que apareceram nos primeiros anos da Capitania, aplicados ao comércio da costa, foram indiscutivelmente os dele. Neles realizava Pero Correia esse comércio e o tráfico de escravos a que se dedicou, capturados entre carijós e tupiniquins das florestas do Sul. Com isso enriquecera, tornara-se um potentado e, apesar de libertino, senhor de um serralho de índias que o fazia esquecer as saudades da pátria, era ouvido e consultado sempre pelo Conselho da nobreza de S. Vicente e Santos.

Em 1549, o fidalgo da chácara "das Naus" estava com seus quarenta anos fortes, temperados na rudeza da costa e na brutalidade das selvas americanas. Era então o mais famoso e impenitente dos caçadores de bugres, perturbador da aproximação natural de brancos e aborígenes.

Naquele ano chegavam a Santos os primeiros padres jesuítas. Com eles vinha Leonardo Nunes, o predestinado, que devia receber para campo de catequese, pouco depois, o Sul da Capitania, onde os tupiniquins, alvoroçados pela audácia de Pero Correia, viviam preparando tocaias aos portugueses.

Governava a Capitania, pela segunda vez, o fidalgo Antônio de Oliveira, substituindo a Braz Cubas. Em seu primeiro governo de quatro anos, de 1538 a 1542, residira sempre em São Vicente; depois Braz Cubas quebrara a praxe, transferindo para Santos a residência dos capitães-mores. Mas Antônio de Oliveira, desde aquele tempo, tomara-se de amores pela vilazinha pobre que fora o seu primeiro pouso no desterro colonial, e procurava, sempre que podia, encaminhar para lá os bons elementos de vida que chegavam. Por isso mesmo, recebendo os jesuítas em Santos, desviou-lhes a atenção daquelas encostas risonhas de São Jerônimo, a cavaleiro de uma região onde os engenhos pululavam prometendo riqueza, para a encosta do morrinho de Tumiaru, a cavaleiro da vila capital. Assim fundou-se o primeiro colégio da Companhia de Jesus na América, e assim colocou-se Leonardo Nunes, acidentalmente, no campo de Pero Correia.

Pode-se mesmo dizer que a primeira visita apostólica do padre Leonardo foi feita ao grande caçador de índios. O jesuíta apareceu na chácara "das Naus" sem que Pero o esperasse.

- Meu irmão!

- Sim, em Cristo, meu padre! - respondeu-lhe o fidalgo com ironia - mas, a que devo a honra de vossa visita?

- À diversidade das nossas missões, Pero Correia! - retrucou Leonardo. Como estamos em campos opostos... eu em nome de Deus, tu em nome de Satã... eu para salvar... tu para matar... vim ver o aspecto da fera que terei de enfrentar antes de enfrentar a inocência dos tupiniquins!...

Pero Correia não pôde conter uma gargalhada.

- Rio para não castigar-vos, padre! Foi para isto que viestes até aqui?

- Sim! (acentuou o padre). Para dizer-te que o coração e a consciência, os próprios interesses da pátria condenam as tuas atividades!

Pero Correia estava assombrado com a coragem do jesuíta, que o afrontava daquela forma.

Leonardo Nunes virou-lhe as costas e desceu a pequena encosta que levava à ribanceira; saltou para a canoa que o trouxera.. Pero Correia ficou mirando-o, lá de cima, do varandim de sua casa, até que a pequena embarcação dobrou a ponta do morro, para o lado do Parnapoan.

***

Ao fim daquele ano de 1549, a solidão agressiva de Tapirema, a praia de Peruíbe, já acusava a existência de uma capela; ao lado dela, um mísero rancho de palmeiras, e nesse rancho, mais miserável do que ele, um apóstolo - Leonardo Nunes - fraco, só, segregado do mundo, entregue ao seu destino de provável mártir da catequese, entre as fúrias dos bárbaros e da natureza.

Ali foi encontrá-lo um dia, na entrada de 1550, em completo transporte aos pés da Virgem da Conceição, o espanto de Pero Correia. Voltava o fidalgo da sua caçada humana aos contrafortes de Itatins; trazia o seu infame despojo, com escravos tupiniquins, manietados e amarrados em cadeia, uns aos outros, tangidos pelos seus homens de guerra. Quando ele o viu assim, comoveu-o o desprendimento do jesuíta; teve receio de ver-se frente a frente com o apóstolo; deixou-lhe rapidamente alguns gêneros junto à capela, e fugiu dali, praia acima, no rumo de Itanhaém.

Ao chegar à chácara do Japuí, Pero estava mal humorado. Suas noites, outrora tranquilas, vinham sendo perturbadas por visões luminosas e nessas visões lá estava sempre, indefectivelmente, aquele detestável e ao mesmo tempo admirável jesuíta, que em tão má hora teimava em atravessar seu caminho.

Vencera como vencia sempre; trouxera muitos escravos, mas sentia-se hipocondríaco, sentia um estranho tédio, como se essa última expedição lhe houvesse resultado nula. Não sabia bem o que era, mas devia ser, segundo pensava, aquele mau espetáculo que desfrutara em Peruíbe, aquele contraste frisante de missões e de forças que Leonardo Nunes parecia ter colocado a propósito em seu trajeto, ele ou o próprio destino.

Um ano decorreu sobre a pacatez da vida vicentina. Em Santos e São Vicente já se comentava a fama do Abarébebê, apelido que os índios do litoral tinham dado a Leonardo Nunes, o padre que estava em toda parte, conquistando-os pela bondade e pelo exemplo, em nome da cruz, a única arma que levava para os sertões, curando-os, desviando-os dos caçadores portugueses, assistindo-os em todas as distâncias, sem que suas pernas e forças, visivelmente frágeis, lhe permitissem tão grande feito; daí aquele apelido que, traduzindo a admiração e o espanto dos aborígenes, queria dizer: o padre que voava.

Já havia muita gente empenhada na aliança com guaianazes e tupiniquins, lavradores em geral, que precisavam do seu apoio contra os ferozes tamoios do litoral norte, religiosos, chefes de família, todos enfim, que viam a necessidade geral daquela aliança, da tranquilidade em todos os outros setores, para uma frente comum contra os tupinambás.

Um homem, porém, anulava todos os esforços e quebrava toda a possibilidade de uma tal aliança; era Pero Correia. Ainda agora, voltava ele de Cabraiaquara, de uma sortida ao gentio de Ururaí, a antiga gente de Tibiriçá, tão amiga de Ramalho, o patriarca de Santo André. Desta vez, o crime de Pero, como se via, era maior e mais a fundo feria as conveniências da colonização, porque atingia um ramo dos guaianazes, povo acessível aos civilizados, que já não hostilizava a civilização e prometia próximo apoio aos jesuítas.

O fidalgo amanhecera mal disposto em sua chácara "das Naus", porque fora infeliz; perdera em combate um amigo e alguns dos seus homens sem resultado, sem uma captura sequer, e qual não fora ainda a sua revolta, mas também seu espanto, quando lhe entrara pela casa, àquela hora matutina, tomado de santo arroubo, o Abarébebê, o detestado Leonardo Nunes.

Pero Correia fitara-o assombrado. Como pudera aquele demônio de padre saber da sua aventura da véspera, e como pudera vir assim tão rápido daquela distância enorme de Peruíbe? O milagroso do fato aureolara momentaneamente a figura do asceta. Fora uma cena rápida. O apóstolo surgira como por encanto diante do fidalgo orgulhoso, dominando-o pela santidade do olhar que lhe lançava.

Leonardo Nunes parecia nimbado de luz; não dissera uma palavra, por longo tempo, mas seus olhos cintilantes eram páginas escritas que se volviam ante a vista do caçador. Aos poucos, porém, aqueles olhos duros, fixos, desmesuradamente abertos, foram se abrandando e tomaram uma expressão de intensa doçura. Pero Correia sentira-se penetrado, sentira-se ajoelhar ante a figura santa do jesuíta, e só então o solitário de Peruíbe tivera uma palavra suave, macia, aveludada:

- Pero!...

Leonardo Nunes desaparecera dali como surgira. Pero Correia, emocionado, procurara subtrair-se àquela impressão, e é assim que o vamos encontrar, após o fracasso da véspera. Pero ria dos seus temores passageiros e trazia então para a ribalta dos seus pensamentos o espetáculo das suas carnificinas, do seu serralho cheio de índias carnudas e moças, da sua prosperidade enorme conseguida no tráfico.

Ele ria, mas o seu riso era nervoso, porque intimamente começava a render-se ao jesuíta, a temer as suas exprobrações, a aceitar a sua estranha e singular influência, ele, o primeiro guerreiro de Martim Afonso naquelas paragens, o nome mais temido de Itatim a Ubatuba, que arrepiava os morubixabas vizinhos com seu grito de guerra. Sentia o fidalgo que as palavras de Leonardo Nunes não pareciam brotar da boca de um homem, que tinham qualquer coisa de sobrenatural, e que em seu olhar parecia haver outros olhares debruçados, que vinham de longe, do Além.

O resultado daquela visita ou visão, nem ele mesmo tinha certeza, foi um certto amolecimento em Pero Correia. Suas próximas corridas aos índios foram canceladas ou adiadas apenas, com inteira estranheza para seus homens e para alguns amigos e companheiros.

Fernando Rodrigues era um deles, era mesmo o mais afeiçoado a Pero e quem mais seguia os seus exemplos; era frequentador assíduo da chácara "das Naus" e notara com mágoa a ascendência cada vez maior do jesuíta sobre o amigo.

Fernando fizera parte da expedição de Cabraiaquara; conservava bem forte o despeito do fracasso comum, e assim tais sentimentos chocaram-se em seu espírito, provocando-lhe uma reação; revoltou-se contra a atitude do caçador vicentino, reputou-a um simples acovardamento e, dias mais tarde, sem nada dizer a Pero, organizou por sua conta uma pequena bandeira, lançando-se para as florestas de Peruíbe.

Peruíbe era, como já vimos, o campo predileto de Leonardo Nunes, a sua seara de almas, onde o devotamento cristianíssimo do apóstolo desenvolvia a catequese e realizava o aldeamento dos conversos com a ereção da sua Capela da Virgem. Talvez por isso, preferiu Fernando Rodrigues, num íntimo desforço, o campo tupiniquim para cenário das suas primeiras correrias independentes.

Quando Pero Correia soube da partida de Fernando, já era tarde, havia dois dias que ele se fora. Prevendo então as consequências do ato impensado do amigo, dada a sua pouca experiência da guerra nas florestas, e certo de que fora por sua causa, por estimá-lo tanto, que Fernando cometera aquela imprudência, Pero reuniu às pressas toda a sua gente, não tanto para prear tupiniquins como para prover à inabilidade fatal do companheiro.

Corria o mês de maio de 1552. Na altura do ribeirão do Coatinga, na picada que Pero abrira na última excursão, oculto num aglomerado de rochas, os homens da bandeira encontraram um guerreiro ferido, estava a gemer, aguardando a provável volta dos companheiros, mas sem esperanças de que voltassem. O pobre homem alegrou-se quando viu aqueles rostos amigos e entre eles a figura heroica de Pero Correia. Estava salvo, pensou; e por ele souberam do rumo certo da gente de Fernando Rodrigues.

Já estavam junto ao Botucavarú onde se localizava o grosso da tribo tupiniquim. Ouviam tiros e vozes distantes. Fernando Rodrigues, evidentemente, caíra na emboscada. Pero Correia tremia; sentia correr nas veias aquele mesmo sangue impetuoso de anos atrás; já sentia inflar as narinas na antiga volúpia do sangue; seus músculos crispavam-se na ânsia de destroçar o gentio que tremia ao seu nome. Precipitaram-se todos, serra acima em ordem de combate. Já viam os homens de Fernando, dizimados pelas flechas selvagens. Pero Correia lançou o seu grito de guerra. Ao seu grito e aos primeiros tiros de sua gente, recuaram os tupiniquins para o alto do espigão, de onde se lançariam novamente em massa, como sempre. Gritos horríveis e enraivecidos respondiam às vozes portuguesas, e soavam entre todos os rugidos de:

- Teangaipaba! Teangaipaba!

A luta ameaçava desencadear-se, sangrenta, fatal, envolvendo os novos combatentes, quando uma estranha e fulgurante parede de luz se interpôs aos dois campos adversários, tolhendo a visão de todos os guerreiros, serenando a sua própria grita.

Naquele momento, ante o assombro de índios e portugueses, um vulto negro se projetou no centro daquela claridade intensa; levitava no ar, como uma aparição; era Leonardo Nunes, o Abarébebê; transfigurado, o jesuíta caminhava com os braços abertos para os dois campos; tinha um aspecto divino; sua voz volumosa e profunda ecoou no silêncio repentino:

- Pero! Pero, meu filho! Por que persegues o teu semelhante?

Pero delirava, deslumbrado pelo milagre; estava tocado pelo desconhecido; olhava desvairadamente os seus guerreiros, e via-os também aterrados e quase de joelhos. Falou a custo:

- Padre... que quereis de mim?

- Quero a tua alma e o teu concurso! (falou imperativo e doce o apóstolo). Deixa a perseguição dos míseros humanos e vem comigo à conquista dessas almas para o Deus que tu desafias! Vem! Eu preciso de ti!

A voz de Leonardo Nunes tinha sublimes inflexões, parecia vir do éter, coada por filtros misteriosos.

Pero Correia se ajoelhou; era a conversão.

- Aqui me tendes, oh padre!

O mosquete do caçador caiu ao chão, como um símbolo.

Fernando Rodrigues estava morto; era um justo tributo ao sofrimento dos tupiniquins. Houve a confraternização. Fizeram-se pazes definitivas. Pero Correia, o caçador de escravos, renascia de si mesmo.

***

Dias depois, a chácara "das Naus" convertia-se em aldeamento de catequese, onde os padres de S. Vicente iam pregar aos catecúmenos. Mais acima dela, na encosta do morro, fez-se uma igreja, sob a invocação de Nossa Senhora das Naus, por sugestão do lugar.

No retiro silencioso da praia de Peruíbe, Leonardo Nunes não mais ficou sozinho. A igrejinha do Abarébebê e seus ranchos em derredor, onde se agrupava o núcleo catequizado do jesuíta, tiveram mais uma sombra boa. Pero Correia, envergando a sotaina negra da Companhia de Jesus, começava a ser o secundador atento de Leonardo. Seria padre um dia, e seu noviciado ia ser aquele - o apostolado das selvas, o sofrimento do próprio ambiente em que fizera sofrer.

Mas, Pero Correia não chegou a ser padre, foi mais do que isso, foi mártir. Após dois anos de sofrimento e catequese pelas florestas do Sul da Capitania, após uma expiação de trabalhos e cilícios voluntários, aprofundado cada vez mais na distância e nos perigos do apostolado, ele colhia na serra de Curitiba a palma do martírio, justiçado pelos carijós.

Os frutos da sua conversão, porém, antes mesmo da sua obra subsequente, já se haviam produzido em resgate da sua vida anterior. os tupiniquins estavam identificados com os portugueses; os guaianazes eram os grandes amigos dos brancos e dos padres, e em sinal disso fundava-se São Paulo de Piratininga; consolidava-se rapidamente a grande obra da colonização.

Um herói, porém, ficava esquecido; o apóstolo obscuro da marinha Sul. Leonardo Nunes morria a esse tempo e davam-lhe uma sepultura monumental; davam-lhe, não, dava-lha o Destino - perecia num naufrágio, quando ia à Europa, e sepultava-se no Oceano - a única sepultura digna dele.

...Naquele momento, ante o assombro de índios e portugueses, um vulto negro projetou-se no centro daquela claridade intensa...

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