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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 12/05/10 18:15:32

 

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NOTÍCIAS 2010

Meu pai, o Opala e eu

Mario Persona [*]

Um Chevrolet Opala zerinho, rosé-metálico, duas portas, rodas tala-larga, que causava sensação por onde passava. Foi o carro que meu pai comprou logo que tirei minha carteira de motorista. Não era para mim, era para ele. O carro dos seus sonhos.

Quando o Opala chegou, meu pai me entregou as chaves sem qualquer restrição ou hesitação. Eu conhecia bem os limites e sabia também o quanto ele gostava daquele carro. Odiaria desapontá-lo traindo sua confiança. Eu o dirigia do jeito que ele havia me ensinado, mantendo o ovo no capô do carro.

Eu sabia de cor a história dos motoristas de Rolls Royce que eram treinados para não derrubar um ovo de sobre o capô do automóvel. A história que meu pai volta e meia recontava era uma metáfora, pois no capô do fusquinha no qual aprendi a dirigir teria sido impossível manter até um ovo frito.

Foi com histórias, parábolas e analogias que cresci e aprendi, e com a relação de confiança e respeito que meu pai foi construindo entre nós. Eu raramente levava bronca. Nem quando precisei de um pedacinho de madeira e serrei o primeiro centímetro do metro de dobrar que ele usava em sua oficina no quintal. Eu nunca soube quantas tábuas ele serrou com a medida errada.

Quando precisei de um prego do tamanho certo para meu carrinho de rolimãs, o pino central do paliteiro de prata de minha mãe serviu direitinho. Percebi que meu pai ficou desapontado, mas não entendi como um paliteiro podia ser mais importante do que um carrinho de rolimãs. Meu pai me compreendia.

Eu respeitava meu pai, e acho que isso tinha muito a ver com a confiança que ele depositava em mim até nas situações mais esdrúxulas. Como no caso do cigarro. Eu devia estar no curso primário quando disse a ele que queria fumar. Qualquer criança que pedisse isso levaria uns tabefes. Não de meu pai.

Mandou que eu fosse ao Bar do Jacó comprar um maço de cigarros e, depois de me ensinar a acender e tragar, foi trabalhar. Engasguei, tossi e quase vomitei, sem falar da brasa que fez um furinho no sofá de meu quarto, mas que eu deixei para revelar em outra ocasião. Quando ele voltou do trabalho devolvi o maço faltando apenas um cigarro.

Aquele maço ficou anos em cima do guarda-roupa para eu pedir a ele quando quisesse. Na escola não era para aceitar cigarros de amigos, só dele. Afinal de contas, eu era seu filho! Lembro-me daquele maço empoeirado em cima do guarda-roupa toda a minha infância e adolescência, como um lembrete da confiança que ele depositava em mim. Nunca fumei.
[*]

As chaves do Opala eram uma espécie de voto de confiança para inaugurar minha fase adulta. O carro ainda cheirava a novo quando um dia ouvi um barulho de liquidificador. Pelo retrovisor lateral vi a tala-larga da roda traseira ficar cada vez mais larga, até a roda sair inteira. Alguma peça se quebrou dentro do diferencial moendo as engrenagens e soltando o eixo com roda e tudo.

Passado o susto do incidente e da conta do mecânico, meu pai contou o caso numa daquelas rodas de parentes em festa de aniversário. Ali, na frente de todos, alguém inventou que me viu pela cidade dando arrancadas e cavalos-de-pau com o Opala de meu pai. Neguei, mas de que valia a palavra de um adolescente em uma roda de adultos?

Na volta para casa meu estômago doía só de pensar que meu pai pudesse ter acreditado naquela história. Esperava ouvir uma palavra de desapontamento, mas não foi o que aconteceu. Quebrando o silêncio que pairava no interior do Opala, meu pai me tranqüilizou:

- Em quem você acha que eu acredito? Nele ou em você? Oras, você é meu filho!

Tentei esconder os olhos úmidos. Aquele momento foi único, algo que nunca mais esqueci e que ficou só entre nós. Meu pai, o Opala e eu.

Mario Persona, pai do articulista (1923-1998)

Foto: arquivo pessoal do autor

[*] Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de comunicação e marketing. Texto disponível em seu site.


[*] Cabe aqui um esclarecimento quanto à cultura e costumes da época. Hoje o método usado por meu pai em relação ao cigarro não faria sentido para as novas gerações por causa do volume de informação que temos. Quando eu era criança a maioria das pessoas ignorava qualquer ameaça séria do cigarro à saúde e os próprios fabricantes escondiam a sete chaves as descobertas da relação entre o cigarro e o câncer. Em 1952 a propaganda do cigarro L&M nos EUA trazia a frase: "Indicado pelo seu médico" e em 1962 o desenho "Os Flintstones" naquele país era patrocinado por uma marca de cigarros (Wilson).

Para meu pai e para qualquer pessoa da época os únicos danos causados pelo cigarro eram tosse, mau hálito, dentes amarelos e coisas semelhantes. Embora meus pais não fumassem, grande parte dos adultos fumavam porque era algo considerado sofisticado. Eu e qualquer criança da época costumávamos ganhar dos pais as caixinhas de cigarro de chocolate da marca Pan e fingíamos fumar. Qualquer empresa hoje que tentasse lançar algum chocolate ou brinquedo em formato de cigarros certamente teria seu produto proibido ou execrado pela opinião pública. Veja mais sobre os cigarrinhos de chocolate Pan no blog "Embalagem Marca"

 

Produto da Pan em várias épocas (ao centro as mais recentes, sem a alusão ao fumo) e da concorrente Garoto (anos 1950)

Imagem: montagem com fotos das embalagens