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NOTÍCIAS 2002

É de pequenino que se torce o pepino e outras avenças

Mário Persona (*)
Colaborador

Chegava correndo, o rapaz. Ninguém podia acusá-lo de uma chegada lerda. Nem de que não tivesse razão para tanta pressa. Tinha. Passava pela minha mesa num gás de dar inveja a rojão. Aquele de vara. Tão rápido, que o vento quase arrancava o jornal de esportes que ele trazia na mão. Lá ia ele, prontinho para fazer o gol da manhã. Era o seu hábito, a descarga de seu estresse.

Engenheiro, adorava o banheiro. Bem vestido, falante e arrogante, de manhã, o que mais queria era chegar na empresa. Por isso vinha correndo, acelerando, costurando, para não chegar vazando. Para não perder tempo, e nem podia. Confessava que saía de casa apertado, para só fazer na empresa. "Em casa", dizia ele, "não sou remunerado". Trocava a privada pela pública, por ser remunerada. E ainda se gabava de seu hábito.

Na verdade, aquele era o seu único gesto produtivo. O resto era ler jornal, escovar as madeixas com escova de cerdas e passear por entre as mesas devagar. Sempre parando, para conversar e atrapalhar. A pressa voltava na saída para o almoço, para recuperar o trabalho perdido. Aí, quem almoçava junto tinha que agüentar sua gabação. Casos de férias na praia, de peixe em posta, de coco verde. Nisso era bom e fluente.

Não demorou para a empresa perceber que o que aquele funcionário fazia, qualquer um sabia. Fazer mais e melhor. E a maioria preferia levar para fazer em casa, ainda que sem remuneração.

Não sei que fim levou depois que o mandaram para a rua. Deve estar em casa, fazendo força para continuar sua produção, embora não remunerada. Na sua idade, um diploma apenas não tem poder para abrir portas. Ou levantar tampas. Seu currículo é pobre. De tanto fazer necessidades presentes, acabou sem futuro. Um hábito que causou um desarranjo em sua carreira e reputação. Algo difícil de limpar.

Maus hábitos abreviam o tempo no emprego. Dificilmente a pessoa chega a esquentar o assento. E quando esquenta, é o assento errado. Um hábito ruim destrói do tato ao olfato, tornando a pessoa egocêntrica e fechada em seu cubículo mundo, a prisão do próprio ventre. Ela já não cheira, nem fede para o que os outros vão pensar. Só ela pensa assim.

O processo começa com pensamentos, pequenos e delgados. Digeridos, o grosso deles vira palavras. Materializadas em ações que se transformam num hábito, nem sempre reto. Um troço difícil de se ocultar e mais ainda de se excretar, se não for logo identificado.

Os anos cuidam de sedimentar o caráter de uma pessoa assim. Sempre ocupada, não abre para ninguém a possibilidade de ser admoestada. Jamais assume suas culpas. Considera-se injustamente acusada pela queda do desempenho. Cedo ou tarde alguém a manda sair. No fim, acaba com uma mão na frente e outra atrás. Até por força do hábito.

O engraxate - Estamos habituados a pensar que ninguém percebe nossos hábitos. Todos percebem. Como percebi, no aeroporto de Viracopos, enquanto aguardava um vôo para a próxima palestra. O garoto saiu de seu posto, a cadeira de engraxar sapatos, e atravessou o saguão ainda vazio, tentando vencer a inibição. Eu o acompanhava com o rabo do olhar. "O senhor quer engraxar?". "Não, obrigado", respondi. Estava engraxado.

Deu meia volta e seguiu de volta ao seu posto. Eu o acompanhei com a percepção, além da visão. Na metade do saguão, um papel de bala chamou sua atenção. Saindo da rota, curvou-se até o piso, tomou o papel pela mão e o acompanhou ao lixo. Depois foi aguardar freguês nenhum. Se ninguém percebeu, eu percebi. Por força do hábito, o garoto procurava conservar a qualidade de seu habitat. Mesmo não sendo remunerado para tal.

De mala em punho, caminhei até sua cadeira e sentei. O garoto levantou o olhar e abriu os ouvidos para me escutar. "Será que um profissional que se abaixa para pegar um papel de bala no chão vai fazer um bom serviço em meu sapato?", perguntei, até emocionado. "Com certeza, senhor!", tamborilou ele com a escova contente. Disse que desde pequeno tinha aquele hábito. Percebi. "É de pequenino que se torce o pepino", diz o ditado. O garoto cultivava o hábito de surpreender.

(*) Mário Persona é consultor, escritor e palestrante, além de autor dos livros Crônicas de uma Internet de verão, Receitas de grandes negócios e Gestão de mudanças em tempos de oportunidades. Esta crônica faz parte dos temas apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico Crônicas de Negócios e mantém endereço próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis.