De suas casas, os moradores observam as cenas bonitas proporcionadas por uma Santos
que cresce e se agita lá embaixo
A vidinha simples dessa gente
Ninguém pode negar a habilidade dos moleques do morro:
jogam futebol em qualquer canto, mesmo bem perto de encostas íngremes, por onde a bola pode descer velozmente em questão de segundos. Eles sabem
exatamente como chutar para evitar que a bola role pelos abismos. E se isso acontece, correm para pegar, sem maiores preocupações ou reclamações.
Tudo parece muito natural para essas crianças, acostumadas a fazer dos caminhos esburacados e praças uma
extensão dos quintais. Se valem da tranqüilidade, da impossibilidade de acesso de automóveis, para ocupar todos os espaços que encontram pela
frente.
Os meninos do mundo cá de baixo não brincam mais com bolinhas de gude, porque o asfalto tomou conta de tudo. Os
fios de eletricidade sempre representam um sério problema na hora de se empinar papagaios e os carros acham de passar bem na hora que algum
atleta tenta marcar o gol de empate.
Essas são apenas algumas das comparações possíveis para se constatar que é bem diferente a vida das crianças dos
morros. Neles, logo cedo a molecadinha está de pé no chão, mesmo que a rua continue enlameada devido à última chuva. Os sapatos e chinelos
atrapalham muito quando se quer aproveitar ao máximo o dia que vem pela frente, com suas novidades, incertezas e mistérios. Um horizonte tão sem
limites que na hora do almoço as mães são obrigadas a se esgoelar no portão, chamando os filhos para tomar banho e se preparar para ir à escola.
Nessas idas até o portão, volta e meia elas deparam com o mais novo em cima de algum telhado, tentando pegar o
papagaio que se enroscou na antena. Até estremecem diante da cena, mas o moleque não parece nem um pouco preocupado diante da possibilidade de
levar bom tombo e se arrebentar no chão de alguma cozinha ou banheiro sem forro.
Sem em nenhum momento dizerem que os filhos são uns anjinhos, muitas mães reclamaram que eles as deixam de
cabelos brancos, brigam pela rua, atiram pedra na janela do vizinho ranzinza só para provocar e vivem à procura de ninhos de galinhas para pegar
os ovos. Se ficam quietos por alguns instantes, logo desconfiam: na certa estão aprontando alguma de arrepiar.
Não faltam crianças de cabelo despenteado, rosto encardido e joelho esfolado. Tudo porque são completamente
normais. Quem há de negar que metem inveja àquelas que moram em apartamentos e no final das contas nem sabem o que é infância?
Os caminhos sinuosos de onde se pode ver Santos inteira - Tudo isso acontece há uns três minutos da
Avenida São Francisco. Esse é o tempo que se leva para subir aos morros Fontana-Bufo, a partir da Avenida Nossa Senhora do Monte Serrate. Muitos
nem imaginam que aquela entrada, logo depois da pista descendente do Elevado Aristides Bastos Machado, conduza até lá: pensam que se trata apenas
de um acesso ao estacionamento Monte Serrate. Coisa de mau santista, que nem conhece direito sua Cidade.
E se os automóveis vencem a subida em questão de minutos, o mesmo não se pode dizer das pessoas, obrigadas a
caminhar a passos não muito rápidos para chegarem ao alto com fôlego. Ainda bem que no trajeto há muretas baixas de proteção: elas servem como
bancos e garantem uns minutos de descanso.
Apenas os rapazes fortes e bem preparados se atrevem a subir de bicicleta. Vão com o corpo curvado, fazendo
ziguezagues, e nas curvas mais acentuadas não têm outra alternativa senão descer e empurrar o veículo. Conseguem chegar ao Largo do Camacho mais
rápido do que os que sobem a pé, mas com meio palmo de língua para fora da boca.
O Caminho Santa Marina também leva ao Largo do Camacho, mas nem todos gostam de utilizá-lo por causa da
escadaria e do trecho cheio de pedregulhos irregulares e escorregadios. E esse famoso largo, que tem o nome de um antigo morador e abriga o Bar
Fontana, é ponto de partida para vários outros lugares.
A partir dele e por meio da Avenida Nossa Senhora do Monte Serrate (aquela que sai da São Francisco), chega-se
ao Morro de São Bento. Um caminho de pedras, escondido entre árvores e atrás de uma propriedade particular, leva ao Monte Serrate e o Caminho
Nossa Senhora de Lourdes vai dar na Avenida Waldemar Leão, bem perto do túnel.
Quem quer ir ao alto do Bufo, na divisa com o São Bento, tem que enfrentar a abandonada escadaria do Caminho
Santa Inês, cheia de mato, buracos e com águas pluviais escorrendo pelos cantos. E há muitas outras vielas, com nome ou sem, por onde se chega ao
Pacheco e ao distante Boa Vista. Coisas que os moradores conhecem muito bem, acostumados que estão a andar de morro em morro para visitar parentes
ou amigos.
Nessas andanças, vêem Santos inteira sob seus pés. De um lado, o Centro com seus edifícios, carros velozes e
telhados vermelhos e encardidos. Mais adiante, o cais, os navios atracados, a distante Via Piaçagüera e até mesmo a Ilha Diana.
De outro ângulo se pode ver a Santa Casa, o Campo da Portuguesa, os edifícios da orla da praia e o mar. Um mundo
totalmente novo se descobre, já que Santos surge imponente e bonita, sem os barulhos que perturbam o dia-a-dia, sem as correrias e a violência de
cada esquina.
Muita simplicidade no cotidiano dos dois mil moradores - Ao contrário de outros morros, onde os barracos
representam a grande maioria, no Bufo-Fontana as casas de alvenaria se misturam às de madeira. Algumas são bem antigas, como as sete casas
geminadas do Caminho Santa Marina. Foram construídas antes mesmo do Bar do Fontana, que tem pelo menos uns 50 anos.
No Caminho Nossa Senhora de Lourdes há casarões enormes, com parte abaixo do nível da rua. Sem contar as casas
geminadas, com passagens entre umas e outras, resquício dos tempos em que as famílias gostavam de partilhar a mesma moradia.
O Censo de 1980 apontou que umas duas mil famílias vivem nesses morros que acordam muito cedo. Às 6 horas
da manhã já é grande o movimento nas escadarias, num vaivém constante que pára um pouco quando as últimas crianças saem para a escola.
Os dias seguem sua rotina e ganham uma tranqüilidade sem limites nas primeiras horas da tarde. A criançada que
estuda no período vespertino já partiu para a escola e quem chegou faz a lição de casa ou mata saudades do cachorro. Só um ou outro menino corre
para comprar um doce na venda.
Do interior das casas sai o barulho de talheres, das torneiras abertas, de abrir e fechar de armários. Um
martelo quebra o silêncio adiante e Roberto Carlos revela suas tristezas por meio de um radinho de pilhas. Uma criança esperneia com medo de tomar
injeção e os passarinhos, danados, cantam, sem que se possa descobrir onde estão.
A vida de um lugar, revelada nas pequenas coisas do cotidiano.
As crianças, espertas como elas só, se divertem o dia inteiro
e descobrem que qualquer cantinho é um bom lugar para brincadeiras
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